domingo, 26 de agosto de 2018

OS DOIS CORPOS DO REI




A revista "L'OBS", no seu nº 2805, de 9-15 de Agosto corrente, insere um curioso artigo, de Alexandre Le Drollec, sobre o culto da imagem imposto por Emmanuel Macron à sua chegada ao Eliseu. E sobre o controle de toda a comunicação visando o presidente, e também a esposa, que se encontram rodeados de especiais conselheiros para o efeito, e de uma fotógrafa que tem o privilégio, por vezes exclusivo, do acesso aos eventos oficiais.

Na impossibilidade de transcrever integralmente o texto, reproduzo algumas citações de personalidades entrevistadas pelo autor:

«Chaque image est encadrée, calculée, controlée

«Chaque président souhaite, à sa manière, maîtriser son image. Mais Macron se démarque de ses prédécesseurs sur un point: il l'assume complètement. Dès qu'ils sont arrivés, son équipe et lui ont d'ailleurs été trés clairs en nous disant: "On veut tout contrôler"

«Macron veut d'emblée marquer les consciences en usant d'une kyrielle de symboles renvoyant à l'Ancien Régime.»

«Le pas lent qu'il adopte lors du Congrès de Versailles, quand il traverse l'aile du Midi entouré de gardes républicains, illustre parfaitement cette quête de solennité.»

«Cette recherche de "présidentialité" reste aujourd'hui une obsession dans l'équipe Macron. En ce moment, ils ont une nouvelle lubie: mettre du bleu-blanc-rouge partout à l'image. Ils l'ont fait pour la cérémonie en hommage à Arnaud Beltrame puis pour la panthéonisation de Simone Veil.»

Bâtir l'image d'un leader est aussi affaire de dosage. Cette représentation d'un pouvoir vertical ne doit être que l'un des ingrédients du récit présidentiel. Il faut savoir injecter une dose de proximité, d'horizontalité. Aussi, au Palais, prend-on toujours soin de "raconter" un autre Macron. Plus humain, plus détendu. Sur les réseaux sociaux, place donc à l'autre visage du président. Un jour, il enchaîne selfies et poignés de main. Le lendemain, il répond au standard de l'Elysée. «En jouant sur ces deux tableaux, Emmanuel Macron a le souci de réunir les fameux "deux corps du roi" théorisés par Kantarowicz, à savoir un corps naturel, terrestre et mortel, et un autre corps, politique éternel, représentant l'unité de la nation.»


***

Poderíamos prosseguir com as citações, mas chega. Sabemos que o Poder é representação, no exacto sentido da representação teatral. Mas exige protagonistas convenientes. E convincentes. Não é o caso de Macron, apesar dos esforços de uma poderosa equipa. Nele tudo é postiço. Assemelha-se a um parvenu. A sua carreira é pouca clara, e ainda menos clara a razão da sua candidatura, para além da desmedida ambição que nem procura esconder. Perguntar-se-á porque foi esta a escolha dos franceses. Par défaut, certamente. Descartados ab initio os candidatos François Fillon, de Les Républicains e Benoît Hamon, do Partido Socialista, ficaram na disputa Marine Le Pen, da Frente Nacional e Jean-Luc Mélenchon, de La France Insoumise, isto é, os dois candidatos credíveis, situados nos extremos do espectro partidário. Como a maioria dos franceses recearia dar o seu voto a propostas excêntricas, baseada nessa previsão surgiu a candidatura de Macron, assumindo-se como vencedora. Mas não à primeira volta. Macron teria de enfrentar na 2ª ou Le Pen, ou Mélenchon. Aconteceu Le Pen, e Macron venceu. Não sei se teria vencido se o seu adversário fosse Mélenchon (a coisa esteve por um triz), mas isso são águas passadas. Em cerca de 50 milhões de cidadãos eleitores, Macron apenas obteve o voto de 20 milhões, com 15 milhões para a abstenção, votos brancos ou nulos. Muito pouco para quem se julga Júpiter. 

Não sei se Emmanuel Macron sonha com a criação de um Terceiro Império (vontade não lhe faltaria), mas não é Luís Bonaparte quem quer, e tal história, que, segundo Marx, já se repetiu como farsa, teria de merecer agora um qualificativo suplementar, embora o autor de Das Kapital já não seja vivo.

Esta vontade de poder de Macron vai revelar-se perigosa, pois sendo um indivíduo inegavelmente inteligente e sem escrúpulos (como o revelou o caso Benalla) não hesitará em lançar mão dos meios mais discutíveis para alcançar os seus inconfessáveis fins. Eleito aos 39 anos, e sendo o mais jovem presidente da Quinta República, a sua natureza não se resignará a abandonar o Olimpo ao fim de cinco anos. Uma recandidatura é possível, uma reeleição é mais do que improvável. Mas, até que fosse reeleito, sairia do Eliseu aos 49 anos. E depois? Que fazer? 

É sobre estas interrogações que todos os franceses devem meditar!

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

MARINE LE PEN E A WEBSUMMIT





Quando foi anunciada a lista de oradores da próxima Websummit, a realizar em Lisboa em Novembro deste ano, verificou-se que da mesma constava o nome de Marine Le Pen, líder do Front National, agora designado como Rassemblement National.

Esta notícia provocou grande agitação em alguns meios políticos, que pretenderam que o Governo obrigasse a organização do senhor Paddy Cosgrave a retirar o convite, já que essa reunião é apoiada pelo Governo português e pela Câmara Municipal de Lisboa (para deslumbramento do senhor Medina), logo com dinheiros públicos.

Parece que o nome da senhora Le Pen desapareceu da lista dos convidados, para posteriormente reaparecer. Alguns partidos políticos e personalidades rasgaram então as vestes, exigindo o banimento da líder daquele partido (preferem que se lhes chame movimento) francês, que obteve os votos de um terço dos cidadãos gauleses nas últimas eleições presidenciais, e poderia ser mesmo hoje a inquilina do Eliseu não fora o surgimento de um fenómeno evanescente que dá pelo nome de Emmanuel Macron.

É curioso constatar que tendo as reacções em Portugal sido fundamentalmente provenientes da área da Esquerda, esta se tenha esquecido de que a parte substancial do eleitorado da senhora Le Pen é proveniente de muitos franceses que antes votavam no PSF e no PCF e eram filiados da CGT. Sinais dos tempos.

Pode não se concordar com muitas das ideias e das propostas do Rassemblement National, pode não se gostar pessoalmente de Marine Le Pen, mas a sua voz exprime as convicções de mais de dez milhões de cidadãos. Além disso, a Websummit não é um comício político propriamente dito, ainda que mesmo as intervenções ditas técnicas sejam política e ideologicamente condicionadas.

Por outro lado, até seria interessante ouvir o que uma figura tutelar da chamada extrema-direita francesa teria para dizer numa conferência do tipo da Websummit, para poder contestar directamente a sua intervenção, se fosse caso disso. Parece que se pretende calar as bocas antes de elas se abrirem, o que significa não só o policiamento da livre expressão como a exigência de um pensamento único alinhado no politicamente correcto. Sugere também que existe o receio de ouvir coisas que possam suscitar a adesão dos auditórios, mas julgadas inconvenientes pelos guardiães da ortodoxia estabelecida.

Surge, agora, a informação que  Cosgrave cancelou definitivamente (?) o convite endereçado a Marine Le Pen para se deslocar à cimeira. Não só esta é uma atitude de extrema deselegância (o que deve ser indiferente a uma pessoa com os interesses de Paddy Cosgrave) como este lamentável folhetim assume proporções de uma opera buffa de péssimo libretto, tanto mais que o Governo português não chegou ao ridículo de proibir (era o que mais faltava) a vinda de Le Pen a Portugal.

Este caso serviu apenas para facultar um acréscimo de popularidade a Marine Le Pen, com a certeza de que se podem combater as ideias com argumentos e não tapando a boca dos adversários.


terça-feira, 14 de agosto de 2018

RECORDAÇÕES DE INFÂNCIA



Para uns dias de férias na praia resolvi levar um livro há muitos anos adormecido na minha biblioteca: Un souvenir d'enfance de Léonard De Vinci, de Sigmund Freud, traduzido por Marie Bonaparte. Lera algumas das obras mais importantes do Mestre de Viena, mas esta, inexplicavelmente, permanecia em sossego numa estante. Leonardo, o homem que Freud considera o Fausto italiano, devido ao seu incansável e insaciável espírito de investigação. (p. 26)

Neste livro, Freud debruça-se sobre a sexualidade infantil (um dos seus temas de eleição) e enuncia as três possibilidades de curiosidade intelectual após o período de investigação da dita sexualidade infantil. (p. 34)

Insiste Freud, neste seu ensaio, que Leonardo se limitou, no decorrer da sua vida, a uma homossexualidade platónica (salvo, talvez, o período em que se iniciou nas artes, quando trabalhou como garzone, dos 14 aos 21 anos, no atelier de Andrea Del Verrocchio, à época o mais notável pintor e escultor florentino). Sabemos hoje que não foi assim, e Freud possivelmente o saberia também, mas a prática habitual da homossexualidade de Da Vinci ou não encaixaria nos seus esquemas mentais  ou a sua exposição pública não seria conveniente para os padrões da época.

Segundo Freud, uma única vez Leonardo inseriu nos seus escritos científicos um dado relativo à sua infância. É quando refere que, ainda no berço, um abutre se lhe dirigiu e lhe abriu a boca com a cauda, tendo-lha enfiado várias vezes entre os lábios. Transcrevo o original italiano da pena do artista: «Questo scriver si distintamente del nibbio par che sia mio destino, perchè nella mia prima infantia è mi parea che essendo io in culla, che un nibbio venissi a me e aprissi la bocca colla sua coda e molte volte mi percotessi con tal coda dentro alle labbra.» (Codex Atlanticus di Leonardo da Vinci - Biblioteca Ambrosiana di Milano). (p. 64)

Esta investida do abutre corresponde à ideia de um fellatio, até porque coda (cauda, em italiano) é o símbolo mais conhecido e a designação do ersatz do membro viril. (p. 53) Ao longo da obra, Freud discorre sobre as circunstâncias do nascimento de Leonardo, filho ilegítimo, arrancado aos cinco anos aos braços da mãe para passar a viver com o pai e com a madrasta que, aliás, cuidadosamente se ocupou dele. Todavia, a ligação à mãe biológica, que o amamentou, permaneceu para sempre em Leonardo. E sendo Freud um estudioso das civilizações orientais, em especial da egípcia, não deixa de salientar que na escrita sagrada hieroglífica os egípcios figuravam a Mãe sob a imagem de um abutre. A divindade maternal, com cabeça de abutre, era designada por Mut, sendo curioso que "mãe" se diga "Mutter" em alemão. (p. 57)

Escreve o Mestre: «Si nous tenons compte de la vraisemblance historique suivant laquelle Léonard se comporta toute sa vie sentimentalement en homosexuel, la question se pose: ce fantasme n'a-t-il pas trait à quelque lien causal entre les rapports de Léonard enfant avec sa mère et son ultérieure homosexualité, manifeste bien que platonique?» (p. 77) «Chez tous nos homosexuels hommes, nous avons retrouvé, dans la toute première enfance, période oublié ensuite par le sujet, un três intense attachement érotique à une femme, à la mère généralement, attachement provoqué ou favorisé par la tendresse excessive de la mère elle-même, ensuite renforcé par un effacement du père de la vie de l'enfant.» (pp. 78-9)

Ao longo da obra, Freud vai tecendo pertinentes considerações. Por exemplo: «Tout le monde, même l'être le plus normal, est capable du choix homosexuel de l'objet, l'a accompli à un moment donné de sa vie, puis, ou bien s'y tient encore dans son inconscient, ou bien s'en défend par une énergique attitude contraire.» (p.92) «La fable de la cicogne, du grand oiseau qui apporte les enfants, que l'on conte à ceux-ci quand leur curiosité s'éveille, les phallus ailés des anciens, l'expression "vögeln" (de Vogel: oiseau) dont on désigne en allemand populaire l'activité sexuelle de l'homme, le nom d'ucello (oiseau) donné par les Italiens au membre viril; autant de fragments d'un grand ensemble nous enseignant que le désir de voler ne signifie rien autre, dans nos rêves, que le désir ardent d'ètre apte aux actes sexuels. C'est là un souhait infantile très précoce.» (p. 129)

Ou ainda: «Mais même en possession de la plus ample documentation historique et du maniement certain de tous les mécanismes psychiques, l'investigation psychanalytique  en deux points importants resterait impuissante à rendre compte de la nécessité qui commanda à un être de devenir ce qu'il fut et de devenir rien d'autre. Nous avons dû admettre que, chez Léonard, le hasard de sa naissance illégitime et l'excessive tendresse de sa mère exercèrent l'influence la plus décisive sur la formation de son caractère et sur sa destinée, le refoulement survenu après cette phase d'enfance ayant conditionné et la sublimation de la libido en soif de savoir et l'inactivité sexuelle de toute sa vie.» (p. 148) «La psychanalyse reste donc impuissante à expliquer ces deux particularités de Léonard: sa tendance extrême au refoulement des instincts et son extraordinaire capacité à la sublimation des intincts primitifs.» (p. 149)

Na capa do livro é apresentada a pintura de Leonardo da Vinci "A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana", exposta no Museu do Louvre. Freud tece diversas considerações sobre as pinturas inacabadas de Leonardo, sempre insatisfeito com as suas obras, o que é o caso do quadro em questão, da "Gioconda" ou da "Última Ceia". Relativamente ao primeiro, Freud enfatiza a ligação primordial entre a Virgem e o Menino (a Mãe e o Filho) considerando Santa Ana uma figura acessória. E estabelece uma comparação geométrica entre a pintura e o abutre dos seus sonhos. Reproduzimos abaixo a interpretação de Freud:


A parte tracejada do desenho representa o abutre. À esquerda, a cabeça e o pescoço do abutre, o corpo confunde-se com o manto azul da Virgem, e à direita alta, a cauda na direcção da boca do Menino. Insondáveis os desígnios de Freud e da psicanálise.

Em 2015, Mário Cláudio publicou Retrato de Rapaz, sobre a vida de Salaï, discípulo e amante preferido de Leonardo Da Vinci. Nesta obra de ficção, a todos os títulos exemplar, o escritor não só retrata Salaï como evidentemente Leonardo, utilizando as informações hoje existentes sobre o Mestre florentino e que não eram ainda conhecidas no tempo de Sigmund Freud. Sobre o livro de Mário Cláudio escrevi então aqui, à data em que o mesmo recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores.


sábado, 11 de agosto de 2018

A QUEDA DO OCIDENTE




Acabou de ser publicado, com o título A Queda do Ocidente? Uma Provocação, o livro de Kishore Mahbubani, originalmente intitulado Has the West Lost It? A Provocation, editado também no corrente ano.

O autor é professor na Universidade Nacional de Singapura, foi embaixador do seu pais nas Nações Unidas e é especialista em relações internacionais.

A presente obra constitui uma lúcida reflexão sobre a situação actual do mundo, e ainda que não subscreva integralmente todas as conclusões de Mahbubani reconheço que este livro é uma contribuição inestimável para a compreensão da já tão anunciada decadência do Ocidente.

Mahbubani começa por se debruçar sobre a Nova Ordem Internacional (outros o têm feito), interrogando-se sobre a forma como o Ocidente tem tratado o Resto do Mundo (The West and the Rest) e considerando que o Ocidente pode e deve, no seu próprio interesse, melhorar as suas relações
com os outros países. E aponta como boa notícia que a economia mundial não está a encolher, embora se verifique uma inversão do crescimento. Durante as últimas décadas a primazia era do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido). Mas em 2015 o G7 contribuiu tão só com 31,5 %, enquanto o E7 (os Sete Emergentes: Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia), com 36,3 %.

Trata depois a forma como a sabedoria ocidental foi aproveitada pelos países então considerados subdesenvolvidos. A disseminação da razão ocidental acabou por desencadear três revoluções silenciosas que explicam o sucesso de muitos países não ocidentais nas últimas décadas. A primeira revolução foi de teor político: a passagem de um regime feudal para um sistema democrático, prevalecente na Ásia e cujas histórias de sucesso estão a influenciar os países da África e da América Latina. [pessoalmente acho algum exagero nesta apreciação]; a segunda revolução foi do foro psicológico, levando milhões de indivíduos a acreditar que podem garantir uma vida melhor para si e para os seus filhos; a terceira revolução foi no campo da governação. Os três países asiáticos mais populosos (China, Índia e Indonésia) tiveram líderes fortes na era pós-colonial, e assim era preciso: Mao-Tsé-Tung, Jawaharlal Nehru e Sukarno, que se focaram mais na política do que na governação. Por outro lado, os líderes actuais, Xi Jinping, Narendra Modi e Jokowi partilham a convicção de que a boa governação transformará e fará florescer as suas sociedades.

O autor passa em revista os principais acontecimentos políticos das últimas décadas e relembra ter alertado a Europa, há vinte e cinco anos, para cuidar melhor do Norte de África, caso contrário o pequeno Mediterrâneo começaria a ser atravessado por barcos carregados de refugiados [recordo que, há anos, Umberto Eco fez a mesma observação]. Refere também a explosão mundial das viagens, salientando que o turismo internacional é o derradeiro sinal de riqueza.

Mas é quando fala da húbris ocidental que o livro é mais certeiro. Com a queda da União Soviética, «os líderes ocidentais desligaram todos os sinais de alarme que os poderiam ter alertado relativamente a outras mudanças significativas» (p. 58). «O ensaio de Fukuyama, O Fim da História, provocou muitos danos cerebrais no Ocidente». Foi nessa altura que se ligaram os motores no resto do planeta, nomeadamente na China (Deng Xiaoping) e na Índia.

Um dos capítulos mais interessantes é o relativo aos erros estratégicos do Ocidente: o Islão, a Rússia e a interferência nas questões internacionais. A invasão mais insensata foi a do Iraque, em Março de 2003, na sequência do 11 de Setembro, liderado [supostamente] por Osama Bin Laden. E ao fazê-lo, depôs um líder secular forte e opositor de Osama: Saddam Hussein. «A invasão do Iraque foi um desastre. E as suas consequências foram piores ainda porque reforçaram a convicção entre 1,5 mil milhões de muçulmanos de que a perda de vidas muçulmanas não era relevante para o Ocidente. Uma questão pertinente para os historiadores futuros será a de tentarem perceber se o aumento de incidentes terroristas nas capitais do mundo ocidental não terá sido uma consequência indirecta desta imprudente campanha de bombardeamento de sociedades islâmicas.» (p. 66)

«O Ocidente comete um erro básico em todas as suas interações com o mundo islâmico: subestima a religião islâmica. Os analistas ocidentais observam estes países e veem apenas um conjunto de sociedades débeis. Associam o mundo islâmico a Estados falhados, como o Afeganistão e a Somália, ou a Estados devastados, como o Iraque e a Síria. Muito embora várias destas sociedades se estejam a debater com problemas complexos, a religião em si mesma está a crescer em força. Com efeito, sem rodeios, o islão pode muito bem ser atualmente a religião mais dinâmica e vibrante do planeta.» (pp. 66-7) Estima o autor que a população muçulmana, que em 2015 constituía 24,1 % da população mundial, será em 2060 equicalente a 31,1 % da mesma.

O segundo maior erro estratégico do Ocidente foi o de continuar a humilhar a Rússia. A dissolução da União Soviética por Gorbachev fora um presente em especial para os Estados Unidos. «Contrariamente às garantias implícitas dadas a Gorbachev e aos líderes soviéticos em 1990, o Ocidente expandiu a NATO até aos países anteriormente vinculados ao Pacto de Varsóvia, entre os quais a República Checa, a Hungria, a Polónia, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia e a Eslováquia. Tom Friedman tinha toda a razão quando afirmou: "Opus-me à expansão da NATO na direcção da Rússia depois da Guerra Fria, num momento em que a Rússia atravessava o seu período mais democrático e menos ameaçador. Continua a ser uma das atitudes mais idiotas que tomámos e, claro, abriu caminho à ascensão de Putin."» (pp. 69-70) Quando o Ocidente ameaçou expandir a NATO até à Ucrânia, até mesmo indivíduos de duvidosíssima reputação como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski se manifestaram contra. «Estes avisos foram ignorados. Os Estados Unidos apoiaram as manifestações contra o presidente Viktor Yanukovich da Ucrânia quando o seu regime colapsou em 2014. Putin sabia que o governo ucraniano seguinte poderia levar o país a aderir à NATO. O resultado poderia ser o de a Crimeia, que pertencera à Rússia entre 1793 e 1954, ser usada pela NATO contra a Rússia. Putin sentiu que não tinha outra hipótese senão reapropriar-se da Crimeia. Até mesmo Gorbachev o apoiou.» (pp.70-1)

«O episódio da Crimeia mostrou que há um limite para a humilhação que um país pode suportar. Era inevitável que o povo russo dissesse "basta!", e a eleição de Putin refletiu a vontade das pessoas.... No verão de 2017, o líder russo foi aviltado pelos meios de comunicação social norte-americanos por ter interferido nas eleições dos Estados Unidos. Tal interferência representa claramente um comportamento errado. Por outro lado, nenhum líder norte-americano fez a pergunta óbvia nos debates de 2017: terão os Estados Unidos interferido nas eleições de outros países? Dov Levin, do Instituto de Política e Estratégia da Universidade Carnegie Mellon, compilou uma base de dados que prova que sim - mais de 80 vezes entre 1946 e 2000.» (pp. 71-2)

O terceiro erro do Ocidente são as intervenções imprudentes nos assuntos internos de vários países. Não foi uma coincidência o fim da Guerra Fria ter trazido as chamadas "revoluções coloridas". Vejamos as principais: Jugoslávia, 2000; Geórgia, 2003; Ucrânia, 2005; Iraque, 2005; Quirguistão, 2005; Tunísia, 2010; Egipto, 2011. Muitas destas revoluções foram geradas internamente, mas quando postas em marcha o Ocidente apressou-se a apoiá-las, visto que para os decisores políticos ocidentais, nomeadamente os norte-americanos, a exportação da democracia era em si um bem. [Isto é a opinião do autor. Claro que para os ocidentais é-lhes indiferente que haja democracias ou não nos terceiros países. Daí o incondicional apoio à Arábia Saudita. Quando dizem pretender exportar a democracia os ocidentais apenas desejam exportar a economia ultraliberal de mercado. O Ocidente há muito, designadamente os Estados Unidos, não possui valores morais mas tão só materiais. E a própria democracia representativa ocidental se converteu numa farsa.]

Aquando dos acontecimentos do 11 de Setembro a maioria dos norte-americanos achou-se vítima inocente de um ataque injustificado. Mas muita gente viu nele uma resposta aos atropelos cometidos pelo Ocidente no mundo islâmico.

Segundo o autor, os países ocidentais necessitam de adoptar uma nova estratégia em relação aos outros países, a estratégia dos "Três Emes": minimalista, multilateral e maquiavélica. O Ocidente já não é o dono do mundo e deverá deixar de se envolver em questões que não lhe dizem respeito. As interferências dos Estados Unidos no Médio Oriente não fazem qualquer sentido, como não fizeram no Sudeste Asiático. «O Resto do Mundo não precisa de ser salvo pelo Ocidente ou educado em função das suas estruturas governamentais e elevados padrões morais. E, seguramente, dispensa ser bombardeado.» (p. 81)

A dimensão multilateral implica a existência de instituições globais mais fortes e eficazes. A Assembleia Geral das Nações Unidas é um parlamento global que deveria exercer a sua actividade independentemente o que não acontece devido aos vetos do Conselho de Segurança. O autor saúda a eleição de António Guterres como secretário-geral da ONU.

A terceira dimensão de uma nova estratégia ocidental terá de ser baseada numa estratégia maquiavélica, no sentido da promoção da virtù (virtude). Mahbubani salienta a astúcia estratégica e lembra Sun Tzu: "Conhece o inimigo, conhece-te a ti mesmo, e a vitória nunca estará em causa, nem em cem batalhas". E, no Ocidente, poucos estão conscientes de quão rapidamente a extensão do seu poder global está a diminuir.

«Os meus amigos asiáticos, africanos e latino-americanos vão ficar perturbados com o meu apelo à astúcia do Ocidente: temerão que eu esteja a tentar prolongar o domínio ocidental sobre a ordem mundial. Não é esse o meu motivo para apelar a uma maior astúcia estratégica. Faço-o porque um Ocidente ingénuo e ideológico é perigoso. A incapacidade do Ocidente em proceder a importantes correcções estratégicas é responsável por muitos dos reveses que o mundo sofreu nos últimos tempos. O planeta tornar-se-á mais instável se o Ocidente não mudar radicalmente de rumo.» (p. 105)

»As democracias não foram concebidas para assumirem desafios a longo prazo. Conseguem responder a ameaças imediatas, como Hitler ou Estaline. No entanto, mesmo se a ameaça vier a ter de ser enfrentada pelos netos dos votantes, estes não elegerão um político que declare: "Vamos sacrificar o presente para salvarmos os nossos netos".» (p. 105)

«Uma das manifestas incongruências do nosso tempo é o facto de o Reino Unido e a França continuarem como "membros permanentes" do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), aprovando resoluções obrigatórias que os restantes países têm de cumprir. Ambas as nações apenas ocupam aquele lugar pelas suas façanhas no século XIX, e não por serem grandes promessas para o século XXI... A melhor maneira de reforçar a credibilidade do CSNU é o Reino Unido ceder o seu lugar à Índia e, tal como defendo no livro The Great Convergence, a França partilhar o seu assento com a UE.» (p. 112)

«O cerne do problema que o Ocidente enfrenta é que nem os conservadores nem os liberais, nem a direita nem a esquerda, compreenderam ainda que a história tomou outro rumo no início do século XXI. A era do domínio ocidental está a chegar ao fim. Os responsáveis destes países deviam levantar a cabeça, deixando de se centrar somente nos seus conflitos internos, para se focarem nos desafios mais abrangentes a nível mundial. Em vez disso, estão a acelerar, de várias maneiras, a sua irrelevância e desintegração.» (p. 125)

«É por isso que este livro pretende ser, em última análise, uma oferenda ao Ocidente, lembrando-o de quanto ele fez para elevar a condição humana a um ponto sem precedentes. Seria trágico, portanto, se o Ocidente se transformasse no principal instigador de agitação e incerteza no período mais promissor da nossa história. Se tal viesse a acontecer, os historiadores vindouros ficariam intrigados com o facto de a civilização mais bem sucedida de sempre ter sido incapaz de aproveitar a maior oportunidade alguma vez apresentada à humanidade. Uma pequena dose de maquiavelismo é tudo do que precisamos para salvar o Ocidente e o Resto do Mundo. Caso contrário, o Ocidente terá mesmo caído.» (p. 126)

Procurei apontar os principais aspectos do livro de Mahbubani, que aborda muitas matérias que é impossível especificar neste post. O autor procede a uma análise pertinente de muitos dos eventos verificados nos últimos tempos, análise que naturalmente subscrevo. Há, todavia, outras apreciações que me confundem e cuja dificuldade de compreensão Mahbubani, ele mesmo, reconhece no fim do livro. Donde parece resultar uma contradição. Em todo o caso, ficam expostas algumas das ideias deste livro que me foi recomendado por um amigo.