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A Queda do Ocidente? Uma Provocação, o livro de Kishore Mahbubani, originalmente intitulado
Has the West Lost It? A Provocation, editado também no corrente ano.
O autor é professor na Universidade Nacional de Singapura, foi embaixador do seu pais nas Nações Unidas e é especialista em relações internacionais.
A presente obra constitui uma lúcida reflexão sobre a situação actual do mundo, e ainda que não subscreva integralmente todas as conclusões de Mahbubani reconheço que este livro é uma contribuição inestimável para a compreensão da já tão anunciada decadência do Ocidente.
Mahbubani começa por se debruçar sobre a Nova Ordem Internacional (outros o têm feito), interrogando-se sobre a forma como o Ocidente tem tratado o Resto do Mundo (The West and the Rest) e considerando que o Ocidente pode e deve, no seu próprio interesse, melhorar as suas relações
com os outros países. E aponta como boa notícia que a economia mundial não está a encolher, embora se verifique uma inversão do crescimento. Durante as últimas décadas a primazia era do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido). Mas em 2015 o G7 contribuiu tão só com 31,5 %, enquanto o E7 (os Sete Emergentes: Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia), com 36,3 %.
Trata depois a forma como a sabedoria ocidental foi aproveitada pelos países então considerados subdesenvolvidos. A disseminação da razão ocidental acabou por desencadear três revoluções silenciosas que explicam o sucesso de muitos países não ocidentais nas últimas décadas. A primeira revolução foi de teor político: a passagem de um regime feudal para um sistema democrático, prevalecente na Ásia e cujas histórias de sucesso estão a influenciar os países da África e da América Latina. [pessoalmente acho algum exagero nesta apreciação]; a segunda revolução foi do foro psicológico, levando milhões de indivíduos a acreditar que podem garantir uma vida melhor para si e para os seus filhos; a terceira revolução foi no campo da governação. Os três países asiáticos mais populosos (China, Índia e Indonésia) tiveram líderes fortes na era pós-colonial, e assim era preciso: Mao-Tsé-Tung, Jawaharlal Nehru e Sukarno, que se focaram mais na política do que na governação. Por outro lado, os líderes actuais, Xi Jinping, Narendra Modi e Jokowi partilham a convicção de que a boa governação transformará e fará florescer as suas sociedades.
O autor passa em revista os principais acontecimentos políticos das últimas décadas e relembra ter alertado a Europa, há vinte e cinco anos, para cuidar melhor do Norte de África, caso contrário o pequeno Mediterrâneo começaria a ser atravessado por barcos carregados de refugiados [recordo que, há anos, Umberto Eco fez a mesma observação]. Refere também a explosão mundial das viagens, salientando que o turismo internacional é o derradeiro sinal de riqueza.
Mas é quando fala da húbris ocidental que o livro é mais certeiro. Com a queda da União Soviética, «os líderes ocidentais desligaram todos os sinais de alarme que os poderiam ter alertado relativamente a outras mudanças significativas» (p. 58). «O ensaio de Fukuyama,
O Fim da História, provocou muitos danos cerebrais no Ocidente». Foi nessa altura que se ligaram os motores no resto do planeta, nomeadamente na China (Deng Xiaoping) e na Índia.
Um dos capítulos mais interessantes é o relativo aos erros estratégicos do Ocidente: o Islão, a Rússia e a interferência nas questões internacionais. A invasão mais insensata foi a do Iraque, em Março de 2003, na sequência do 11 de Setembro, liderado [supostamente] por Osama Bin Laden. E ao fazê-lo, depôs um líder secular forte e opositor de Osama: Saddam Hussein. «A invasão do Iraque foi um desastre. E as suas consequências foram piores ainda porque reforçaram a convicção entre 1,5 mil milhões de muçulmanos de que a perda de vidas muçulmanas não era relevante para o Ocidente. Uma questão pertinente para os historiadores futuros será a de tentarem perceber se o aumento de incidentes terroristas nas capitais do mundo ocidental não terá sido uma consequência indirecta desta imprudente campanha de bombardeamento de sociedades islâmicas.» (p. 66)
«O Ocidente comete um erro básico em todas as suas interações com o mundo islâmico: subestima a religião islâmica. Os analistas ocidentais observam estes países e veem apenas um conjunto de sociedades débeis. Associam o mundo islâmico a Estados falhados, como o Afeganistão e a Somália, ou a Estados devastados, como o Iraque e a Síria. Muito embora várias destas sociedades se estejam a debater com problemas complexos, a religião em si mesma está a crescer em força. Com efeito, sem rodeios, o islão pode muito bem ser atualmente a religião mais dinâmica e vibrante do planeta.» (pp. 66-7) Estima o autor que a população muçulmana, que em 2015 constituía 24,1 % da população mundial, será em 2060 equicalente a 31,1 % da mesma.
O segundo maior erro estratégico do Ocidente foi o de continuar a humilhar a Rússia. A dissolução da União Soviética por Gorbachev fora um presente em especial para os Estados Unidos. «Contrariamente às garantias implícitas dadas a Gorbachev e aos líderes soviéticos em 1990, o Ocidente expandiu a NATO até aos países anteriormente vinculados ao Pacto de Varsóvia, entre os quais a República Checa, a Hungria, a Polónia, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia e a Eslováquia. Tom Friedman tinha toda a razão quando afirmou: "Opus-me à expansão da NATO na direcção da Rússia depois da Guerra Fria, num momento em que a Rússia atravessava o seu período mais democrático e menos ameaçador. Continua a ser uma das atitudes mais idiotas que tomámos e, claro, abriu caminho à ascensão de Putin."» (pp. 69-70) Quando o Ocidente ameaçou expandir a NATO até à Ucrânia, até mesmo indivíduos de duvidosíssima reputação como Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski se manifestaram contra. «Estes avisos foram ignorados. Os Estados Unidos apoiaram as manifestações contra o presidente Viktor Yanukovich da Ucrânia quando o seu regime colapsou em 2014. Putin sabia que o governo ucraniano seguinte poderia levar o país a aderir à NATO. O resultado poderia ser o de a Crimeia, que pertencera à Rússia entre 1793 e 1954, ser usada pela NATO contra a Rússia. Putin sentiu que não tinha outra hipótese senão reapropriar-se da Crimeia. Até mesmo Gorbachev o apoiou.» (pp.70-1)
«O episódio da Crimeia mostrou que há um limite para a humilhação que um país pode suportar. Era inevitável que o povo russo dissesse "basta!", e a eleição de Putin refletiu a vontade das pessoas.... No verão de 2017, o líder russo foi aviltado pelos meios de comunicação social norte-americanos por ter interferido nas eleições dos Estados Unidos. Tal interferência representa claramente um comportamento errado. Por outro lado, nenhum líder norte-americano fez a pergunta óbvia nos debates de 2017: terão os Estados Unidos interferido nas eleições de outros países? Dov Levin, do Instituto de Política e Estratégia da Universidade Carnegie Mellon, compilou uma base de dados que prova que sim - mais de 80 vezes entre 1946 e 2000.» (pp. 71-2)
O terceiro erro do Ocidente são as intervenções imprudentes nos assuntos internos de vários países. Não foi uma coincidência o fim da Guerra Fria ter trazido as chamadas "revoluções coloridas". Vejamos as principais: Jugoslávia, 2000; Geórgia, 2003; Ucrânia, 2005; Iraque, 2005; Quirguistão, 2005; Tunísia, 2010; Egipto, 2011. Muitas destas revoluções foram geradas internamente, mas quando postas em marcha o Ocidente apressou-se a apoiá-las, visto que para os decisores políticos ocidentais, nomeadamente os norte-americanos, a exportação da democracia era em si um bem. [Isto é a opinião do autor. Claro que para os ocidentais é-lhes indiferente que haja democracias ou não nos terceiros países. Daí o incondicional apoio à Arábia Saudita. Quando dizem pretender exportar a democracia os ocidentais apenas desejam exportar a economia ultraliberal de mercado. O Ocidente há muito, designadamente os Estados Unidos, não possui valores morais mas tão só materiais. E a própria democracia representativa ocidental se converteu numa farsa.]
Aquando dos acontecimentos do 11 de Setembro a maioria dos norte-americanos achou-se vítima inocente de um ataque injustificado. Mas muita gente viu nele uma resposta aos atropelos cometidos pelo Ocidente no mundo islâmico.
Segundo o autor, os países ocidentais necessitam de adoptar uma nova estratégia em relação aos outros países, a estratégia dos "Três Emes": minimalista, multilateral e maquiavélica. O Ocidente já não é o dono do mundo e deverá deixar de se envolver em questões que não lhe dizem respeito. As interferências dos Estados Unidos no Médio Oriente não fazem qualquer sentido, como não fizeram no Sudeste Asiático. «O Resto do Mundo não precisa de ser salvo pelo Ocidente ou educado em função das suas estruturas governamentais e elevados padrões morais. E, seguramente, dispensa ser bombardeado.» (p. 81)
A dimensão multilateral implica a existência de instituições globais mais fortes e eficazes. A Assembleia Geral das Nações Unidas é um parlamento global que deveria exercer a sua actividade independentemente o que não acontece devido aos vetos do Conselho de Segurança. O autor saúda a eleição de António Guterres como secretário-geral da ONU.
A terceira dimensão de uma nova estratégia ocidental terá de ser baseada numa estratégia maquiavélica, no sentido da promoção da
virtù (virtude). Mahbubani salienta a astúcia estratégica e lembra Sun Tzu: "Conhece o inimigo, conhece-te a ti mesmo, e a vitória nunca estará em causa, nem em cem batalhas". E, no Ocidente, poucos estão conscientes de quão rapidamente a extensão do seu poder global está a diminuir.
«Os meus amigos asiáticos, africanos e latino-americanos vão ficar perturbados com o meu apelo à astúcia do Ocidente: temerão que eu esteja a tentar prolongar o domínio ocidental sobre a ordem mundial. Não é esse o meu motivo para apelar a uma maior astúcia estratégica. Faço-o porque um Ocidente ingénuo e ideológico é perigoso. A incapacidade do Ocidente em proceder a importantes correcções estratégicas é responsável por muitos dos reveses que o mundo sofreu nos últimos tempos. O planeta tornar-se-á mais instável se o Ocidente não mudar radicalmente de rumo.» (p. 105)
»As democracias não foram concebidas para assumirem desafios a longo prazo. Conseguem responder a ameaças imediatas, como Hitler ou Estaline. No entanto, mesmo se a ameaça vier a ter de ser enfrentada pelos netos dos votantes, estes não elegerão um político que declare: "Vamos sacrificar o presente para salvarmos os nossos netos".» (p. 105)
«Uma das manifestas incongruências do nosso tempo é o facto de o Reino Unido e a França continuarem como "membros permanentes" do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), aprovando resoluções obrigatórias que os restantes países têm de cumprir. Ambas as nações apenas ocupam aquele lugar pelas suas façanhas no século XIX, e não por serem grandes promessas para o século XXI... A melhor maneira de reforçar a credibilidade do CSNU é o Reino Unido ceder o seu lugar à Índia e, tal como defendo no livro
The Great Convergence, a França partilhar o seu assento com a UE.» (p. 112)
«O cerne do problema que o Ocidente enfrenta é que nem os conservadores nem os liberais, nem a direita nem a esquerda, compreenderam ainda que a história tomou outro rumo no início do século XXI. A era do domínio ocidental está a chegar ao fim. Os responsáveis destes países deviam levantar a cabeça, deixando de se centrar somente nos seus conflitos internos, para se focarem nos desafios mais abrangentes a nível mundial. Em vez disso, estão a acelerar, de várias maneiras, a sua irrelevância e desintegração.» (p. 125)
«É por isso que este livro pretende ser, em última análise, uma oferenda ao Ocidente, lembrando-o de quanto ele fez para elevar a condição humana a um ponto sem precedentes. Seria trágico, portanto, se o Ocidente se transformasse no principal instigador de agitação e incerteza no período mais promissor da nossa história. Se tal viesse a acontecer, os historiadores vindouros ficariam intrigados com o facto de a civilização mais bem sucedida de sempre ter sido incapaz de aproveitar a maior oportunidade alguma vez apresentada à humanidade. Uma pequena dose de maquiavelismo é tudo do que precisamos para salvar o Ocidente e o Resto do Mundo. Caso contrário, o Ocidente terá mesmo caído.» (p. 126)
Procurei apontar os principais aspectos do livro de Mahbubani, que aborda muitas matérias que é impossível especificar neste
post. O autor procede a uma análise pertinente de muitos dos eventos verificados nos últimos tempos, análise que naturalmente subscrevo. Há, todavia, outras apreciações que me confundem e cuja dificuldade de compreensão Mahbubani, ele mesmo, reconhece no fim do livro. Donde parece resultar uma contradição. Em todo o caso, ficam expostas algumas das ideias deste livro que me foi recomendado por um amigo.