«Les révoltés, lors d’une émeute de 1933,
arrachèrent l’une des tasses les plus sales, mais des plus chères. Elle était
prés du port et de la caserne, et c’est l’urine chaude de milliers de soldats
qui en avait corrodé la tôle…
JEAN GENET
Le Journal du Voleur, 1948
O Schwules Museum, de Berlim, apresenta, desde 17 de Novembro passado até ao próximo dia 5 de Fevereiro, a exposição "Fenster zum Klo" (Toilettes publiques, affaires privées), organizada pelo artista e investigador francês Marc Martin, coordenando uma vasta equipa de especialistas internacionais, nomeadamente alemães, e a que o jornal “Libération” se referiu largamente e me mereceu um comentário no meu post de 1 de Novembro passado. Para documentar esta realização sui generis foi editado um precioso catálogo, reunindo, a par de textos sobre a matéria e citações, entre as quais as de alguns dos maiores escritores e artistas dos últimos tempos (Verlaine, Henry Miller, Rimbaud, Didier Eribon, Jean Genet, Marcel Proust, Marcel Pagnol, Roger Peyrefitte, Edmund White, Bauhaus, Gustave Flaubert, René Étiemble, Brassaï, Céline, Alphonse Allais, Nina Hagen, etc., etc.) um conjunto de fotografias (da época ou reconstituições), de que, por motivos óbvios e dada a interdição de autor e editor, apenas reproduzimos três, a fim de situar o leitor na atmosfera da obra.
Importa salientar que o notável e volumoso catálogo (300 páginas), dedicado aos ex-urinóis de Paris e de Berlim, inclui estudos de carácter histórico, social, literário e artístico que lhe conferem o carácter de pioneiro nas obras sobre a matéria, uma verdadeira estreia em termos iconográficos. Editado em língua alemã, é acompanhado de um opúsculo, em francês ou em inglês, com a tradução dos principais textos. Mas muitos outros artigos de interesse não constam das traduções, tal como as entrevistas realizadas por Marc Martin a diversas personalidades. Compreende-se, todavia, a dificuldade de publicar em várias línguas um tão volumoso catálogo, a cores e em papel couché.
Seria estultícia pretender resumir num simples post o vastíssimo e importantíssimo acervo carreado pelos responsáveis da iniciativa. Nem seria fácil fazer compreender aos leitores em geral, em meia dúzia de linhas, o incontestável serviço público que as edículas em causa prestaram a consecutivas gerações de cidadãos ao longo de quase duzentos anos, até que, em nome da moral e dos bons costumes, foram destruídas ou encerradas e remetidas para o olvido das gerações vindouras, que passaram a utilizar a internet para fins pretensamente idênticos, numa era que se propõe a robotização universal.
Não será exagero afirmar-se que o desaparecimento dos urinóis públicos é um dos sinais da decadência da civilização ocidental. Quem ler o catálogo perceberá porquê! Aliás, a vaga de puritanismo das últimas décadas configura um retrocesso do livre pensamento e a tentativa de restaurar, ainda que sob outras roupagens, uma censura inquisitorial, como se pode facilmente constatar pelas notícias que vamos conhecendo hoje. quase diariamente, e que traduzem o carácter totalitário da globalização contemporânea.
Seria interessante que se pudesse publicar também um estudo sobre os urinóis públicos de Lisboa, mas duvido que exista documentação fotográfica bastante para semelhante propósito. A cidade, como Paris ou Berlim, ou a maior parte das grandes cidades da Europa, foi igualmente dotada de semelhantes estabelecimentos, alguns havendo que adquiriram a celebridade. Mas a maior parte dos seus frequentadores está morta, e os sobreviventes, por falta de documentação, ou de coragem, ou de meios, não se atreveriam a cometer uma tal “afronta” às ligas de costumes que pastoreiam a vida íntima dos cidadãos.
Regressemos ao catálogo.
Boulevard des Capucines, Paris, 1959 |
Os urinóis públicos, pissotières em francês, também conhecidos por tasses ou vespasiennes, começaram a desaparecer em Paris, em finais dos anos 70. O fotógrafo Jean-Claude Aubry fotografou, em 7 de Junho de 1984, uma pissotière famosa, a Ginette, do Parque des Buttes-Chaumont. Assistiu ao seu desmantelamento pelos funcionários municipais e resolveu seguir o percurso do cortejo dos destroços, tendo descoberto que se situava em Aubervilliers o cemitério secreto dos mictórios parisienses. [Talvez a maire de Paris, Anne Hidalgo, possa incluir o sítio no roteiro dos passeios turísticos pela cidade]. Votando ao local no dia seguinte, Aubry conseguiu encontrar os restos “mortais” da Ginette no meio de centenas de outras tasses desmanteladas e, junto a eles, uma coroa de flores que um nostálgico desconhecido ali colocara em homenagem a um passado glorioso. O que foi, sem dúvida, a última homenagem à memória de Ginette, antes que um ferro-velho viesse adquirir dias depois as ruínas das suas chapas retorcidas.
Este tipo de urinóis públicos foi imaginado pelo prefeito Rambuteau em 1834, e baptizados de vespasiennes em referência ao imperados Vespasiano, que impusera outrora uma taxa sobre a urina. Com a sua construção evitava-se a prática de urinar nas ruas ou junto às paredes dos edifícios.
Os primeiros urinóis públicos de Berlim só viram o dia em 1865, e ficaram conhecidos por Café Achtek, dada a sua forma octogonal. Em Paris, estes famosos quiosques eram de dimensão diversa, podiam ter entre 3 a 16 lugares, e contavam-se cerca de 4.000 nos começos do século passado. Nessa altura, em Berlim existiam apenas 139 e só se multiplicarão depois da guerra, quando o seu número começou a declinar na capital francesa.
Richard Wagner-Platz, Berlin-Charlottenburg, 1987 |
O que o autor escreve sobre a “brassage social” é muito interessante. Citando Michael Bochow, salienta: «Leur usage étant gratuit, les hommes des milieux populaires, les ont donc assidûment fréquentées. Et la présence de ces proletaires rendait les tasses d’autant plus attrayantes pour les homosexuels; surtout ceux des couches moyennes. Elles ont été, pendant plus d’un siècle, un lieu de brassage social et culturel inédit.» E citando a seguir Friedrich Wilhelm, sobre as pissotières dos bairros populares de Berlim, acrescenta: «Les Turcs ont nourris tous mes fantasmes. Et je les ai tout rencontrés dans les pissotières… Ils ne fréquentaient pas du tout les bars gays, très peu les saunas gays et pour cause ils ne l’étaient pas officiellement…» Wilhem relata ainda o que lhe disse um entrevistado sobre a sua primeira experiência com um imigrante em Paris nos anos 60: «Je me suis fait sodomiser qu’une seule fois dans ma vie… C’était un Algérien que j’avais rencontré dans une tasse à la porte Montmartre…»
Bruno LaBruce relata: «Pour les pères de famille, il n’y avait pas d’autre alternative que le sexe dans les toilettes publiques. Ces lieux permettaient une double vie en quelque sorte. L’air de rien, c’était pratique pour eux d’entrer là et de pouvoir assouvir secrètement leurs penchants homosexuels en toute discrétion.»
Precioso o testemunho do jornalista alemão Mike Nietomertz: «En dégageant les pissotières des trottoirs des sociétés occidentales, il semble qu’on ait voulu se débarasser du risque trop grand de voir tout ce que la Terre compte d’hétérosexuels se laisser tenter par une branlette, puis une pipe, et puis, pourquoi pas, pour une conversion à l’homosexualité! … Les espaces de rencontre intersexuelle représentent le risque que les sexualités débordent de leur cadre stricte, et notamment la sexualité la plus en danger pour les pouvoirs politiques (l’hétérosexualité, pour ne pas la citer). Et c’est uniquement pour cette raison que la politique de la ville s’est acharnée à détruire ces espaces… Voilà pourquoi je regrette les vespasiennes, voilà pourquoi je pense que la volonté politique d’exterminer ces derniers espaces de rencontres intersexuelles tient à la peur de voir l’hétérosexualité s’adonner à ses penchants bisexuels.»
«…À la pistière de la rue de Bourgogne j’ai
vu entrer M. le baron de Charlus. En revenant de Neuilly, bien une heure après,
j’ai vu ses pantalons jaunes dans la même pistière, à la même place, au milieu,
où il se met toujours pour qu’on ne le voie pas…»
MARCEL
PROUST
À
la recherche du temps perdu, 1906-1922
O grupo de música pop/electrónica da Alemanha de Leste KARAT (criado em 1975) dedicou algumas notas ao “urinol do presidente da Câmara” de Leipzig, e Nina Hagen, em 1978, entoou louvores a um encontro nos sanitários femininos da estação central do Zoo: “Auf’m Bahnhof Zoo”. Não só Jean Genet e Marcel Proust se referem nas suas obras a estas edículas de reputação sulfurosa, mas outros escritores “hétérosexuels devant l’éternel”, como, por exemplo, Henry Miller, Marcel Pagnol ou Louis Ferdinand Céline as devem ter frequentado para delas poderem dar convincente testemunho nos seus livros. Um dos filmes gay mais populares na Alemanha, Taxi zum Klo (1980), de Frank Ripploh, é hoje um clássico da subcultura dos urinóis em Berlim-Oeste. No seu livro Off the Streets, Into the Toilets (2017), Marc Siegel escreve, a propósito do histórico urinol do bairro gay de Munique: «Il s’agit d’un pissoir historique que Rainer Werner Fassbinder et Freddie Mercury ont apparemment utilisé – peut-être même en même temps…»
Tiergarten, Berlin, 2017 |
Em França, foi Patrice Chéreau que impôs a tasse nos ecrãs, com o filme L’homme blessé (1983), em que se passa uma cena no urinol subterrâneo da Gare du Nord, em Paris. Sobre as inscrições nas paredes das chiottes, escreve o autor: «A l’aube de ma puberté, dans une politique de réaménagement urbain et d’obsession hygièniste, les toilettes publiques ont commencé à disparaître et avec elles ces murs “salis”. Toute une subculture s’est effacée brutalement. Illisible, obscène, littérature de malades, pathologie, misère sexuelle [Alain Jaubert, Ernest ou l’or des tasses, préface du livre Sexe et Graffiti, 1979], c’est ainsi qu’on jugeait facilement la prose dans les chiottes. Alain Jaubert y voyait au contraire la plus grande richesse. Pour lui, la subversion était générale: l’ortographe, la typographie, la calligraphie, le lexique, la réthorique, l’epopée, la prophétie… Réponses, effacements, ratures, correspondances, superpositions, thèmes, variations, repetitions…Il s’étonnait que personne avant Ernest ne se soit vraiment interessé à cet or souterrain et n’ait songé à simplement lui faire changer de support. C’est ainsi qu’il signe en 1979 la préface du livre de cet anonyme et discret documentaliste scientifique, qui à ses heures de loisir retranscrivait méthodiquement et décalquait des milliers de graffiti sexuels rencontrés dans les toilettes publiques: “Sexe et Graffiti” l’un des plus prodigieux documents sur la sexualité humaine qu’on ait pu lire depuis certaines oeuvres du marquis de Sade. Une anthologie! Au petit florilège en extrait pages suivantes, j’ajoute un morceau de choix relevé par Claude Maillard en 1967 au milieu d’annonces érotiques avec débauche de qualificatifs, en une miniscule écriture: “Pensez aussi aux vieux.” [Claude Maillard, Les Précieux Édicules. Les Vespasiennes de Paris, 1967].
Quem não possa deslocar-se a Berlim para visitar tão curiosa e pedagógica exposição, poderá obter uma ideia da mesma pela consulta do catálogo, do qual aqui pretendemos dar uma fugaz imagem, e cuja leitura muito contribuirá para o esclarecimento dos espíritos mais obtusos.