segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O FIM DA "EUROPA"




Apraz-me transcrever este artigo de José Pacheco Pereira, porque de alguma forma ele corrobora opiniões que tenho já expendido. A minha única dúvida, se dúvida existe, reside no facto de não estar ainda absolutamente certo se a política "comunitária" prosseguida pelos actuais dirigentes europeus resulta da sua inanidade, ambição, obstinação, ignorância da História, etc., ou se, pelo contrário, ela configura uma deliberada vontade de fazer estilhaçar a União Europeia, com propósitos certamente inconfessáveis mas provavelmente bem delineados. 

Escreveu Pacheco Pereira no "Público":

Tudo está armadilhado

A “Europa” actual quer a queda do governo Costa e por isso o humilha com novo pacote de austeridade, e força a ruptura com o BE e o PCP.
Eu já não estou muito para surpresas, mas ainda tenho alguma capacidade de ficar surpreendido. E por isso me surpreende a ligeireza, para não dizer irresponsabilidade, como que os partidos da actual maioria tomam o que estão a fazer, ou melhor, o que não estão a fazer. Ou seja, meteram-se num curso muito arriscado, perigoso, cheio de dificuldades, e comportam-se como se houvesse uma qualquer normalidade na actual situação que ajudaram a criar, e como se pudessem continuar a fazer política “habitualmente”.

Preciso desde já que esse curso — um governo minoritário PS com apoio parlamentar do BE e do PCP — me parece positivo, para puxar a alavanca para o lado oposto daquele para que estava toda inclinada, à direita, e assim abrir caminho a um recentramento da vida política portuguesa. Hoje, a única possibilidade de um regresso ao centro,  centro-esquerda, centro-direita —, é haver sucesso num governo de centro-esquerda que acabe com o estado de excepção que era o “ajustamento” eterno, com uma efectiva limitação à democracia e a perda quase total da soberania.

Se Costa não tivesse rompido com o “arco de governação”, a governação PSD-CDS continuaria exactamente a mesma política, porque ela é pensada como sendo para 20 ou 30 anos, como se isso fosse possível em democracia e, como não teria resultados, teria que ser eterna. Para ser “eterna” teria que ser cada vez mais autoritária, como já estava a ser.

O outro factor positivo foi a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa num quadro de “esquerda da direita”, ou seja, ao centro, que, se o Presidente eleito permanecer fiel à sua campanha, pode ajudar também a virar essa alavanca que Passos, Portas e, no fim do mandato, Cavaco, com o apoio político da Europa do PPE, puxaram praticamente até ao chão. Não sei se isto resulta  governo de centro-esquerda mais Presidente moderado —, mas, aqui sim, não vejo outra alternativa hoje. Pode haver amanhã, mas hoje não há, ou há sucesso ou há desastre. Por isso não me é indiferente esta experiência governativa, não sendo este o “meu” governo, por muito que assobiem as intrigas das claques.

Dito isto, no actual contexto europeu, o que se está a passar em Portugal, sendo na verdade apenas uma tímida mudança, é tratado quase como uma revolução e, como tal, mobiliza as gigantescas forças que estão preparadas para matar no ovo qualquer desvio menor que seja ao cânone alemão. O governo de Costa tem todas as probabilidades de ser derrubado pela Europa do PPE e dos socialistas colados aos alemães, seja directamente por um qualquer “chumbo” europeu, seja indirectamente pela obrigação de aplicar políticas que lhe retirem o apoio parlamentar do BE e do PCP.

O Orçamento de 2016 foi apenas uma amostra e o governo saiu já bastante magoado dessa amostra, que lhe abastardou a política que pretendia seguir, criou desconfianças e distâncias com os seus aliados e colocou-o junto da opinião pública como um governo fragilizado, errático nas finanças e na economia, mesmo incompetente. O comportamento de diktat europeu para as décimas do défice, a sucessão de declarações hostis sobre os “riscos” da política portuguesa de incumprimentos vários às “regras” do Tratado Orçamental, contrasta com a complacência face a idênticos incumprimentos do governo anterior, que, como era “amigo”, tinha margem de manobra e podia no fim esnobar dos relatórios do FMI, que hoje brande contra o PS.

Aliás, a dureza e hostilidade que existem contra o governo de Costa, contrastam com a vontade dos principais dirigentes europeus darem a Cameron medidas que significam recuos importantes (e que também estão nos Tratados) em matéria de liberdade de movimentos e direitos sociais dos emigrantes, para que este volte com um frágil papel para convencer os eleitores ingleses que afinal, com uma longa lista de opting out, ainda podem continuar na Europa. Ou seja, em matéria de direitos sociais, a mesma Europa que não cede a Portugal uma décima no défice sem vilipendiar um governo eleito, está disposta a abdicar perante a pressão inglesa. Na economia do “ajustamento”, não há um milímetro de cedência às “regras”, nos direitos sociais, tudo é negociável. Por tudo isto, a “Europa” actual, Schäuble, Dijsselbloem, Moscovici, Dombrovskis, mais as suas cortes de funcionários zelosos, a última coisa que desejam é que possa haver qualquer mitigado sucesso de um governo que está a cometer esse crime de lesa-economia que é “reverter” salários e pensões, taxar fundos e bancos e não ao contrário.

O braço armado desta política é, hoje, em Portugal o PSD de Passos, que está convencido de que o seu regresso ao poder é a curto prazo. Passos continua a comportar-se como se fosse um Primeiro-ministro usurpado, de bandeirinha governamental na lapela, a fazer falsas inaugurações, e anda na Europa, o seu grande aliado, a instigar a fronda contra a política do governo e a falar para a as agências de rating e os mercados mostrando-lhes qual o sentido político que pode ter em Portugal uma subida de juros ou um abaixamento de rating: destruir o governo “deles”. Sempre que falam em “preocupações”, mesmo com análises falsas como as das subidas de juros há uma semana, percebe-se muito bem que mais do que preocupações são desejos.

PS, PCP e BE incitaram a sua experiência fora do “arco da governação”, derrubando um governo assente no partido que ganhou as eleições, e apoiando um partido que as perdeu. O primeiro não tinha maioria parlamentar, o segundo tinha, por isso o novo governo tem toda a legitimidade, mas parte sempre fragilizado e só pode superar essa fragilidade pela qualidade e integridade da governação. Ora esse acrescento de legitimidade está a fazer-se no meio de uma ecologia venenosa, num terreno armadilhado e com forças poderosas muito para além de uma apatia desconfiada, numa actuação agressiva.

Tem a hostilidade aberta dos meios de comunicação social, salvo raras excepções, que se comprometeram com as principais ideias do “ajustamento”, quer com proselitismo, como aconteceu com muita imprensa económica, quer interiorizando o modo como se colocam os problemas com a “gramática” dos “ajustadores”. O “não há alternativa” entrou profundamente no espaço mediático e no espaço público e, por isso, qualquer inversão, “reversão” como agora se diz, é vista como uma blasfémia incompetente, uma cornucópia de custos por pagar, um risco de bancarrota ao virar da esquina. A “economia”, como eles a pensam, tornou-se única e inquestionável e por isso o mundo ou é de Sócrates e da bancarrota ou é de Passos e da troika, não há meio termo.

Este comportamento reflecte também o dos principais interesses económicos presentes na governação do PSD-CDS, e que com eles formaram uma forte aliança, assente no primeiro governo em Portugal que se pretendia comportar como uma empresa, pensava como se o país fosse uma empresa, despedia para flexibilizar, diminuía salários e pensões, e acima de tudo queria quebrar a espinha a essas sobrevivências arcaicas do 25 de Abril como eram sindicatos e greves. Esses interesses económicos, que são de uma parte da economia, e não necessariamente da mais eficaz, sentem-se também usurpados do instrumento da governação, e por isso farão a vida negra ao PS, até o derrubarem ou o comprarem em todo ou à peça.

Face a esta ecologia, o PS comporta-se como se pudesse continuar a governar como sempre fez, dá umas coisas a uns e espera sentado pela sua fidelidade; tira umas coisas a outros e depois assusta-se, recua e avança como pode. Ainda não interiorizou o preço que tem a pagar se esta experiência falhar e não tem sentido de urgência face aos riscos, principalmente europeus que estão aí à porta. A “Europa” actual quer a queda do governo Costa e por isso o humilha com novo pacote de austeridade, e força a ruptura com o BE e o PCP. Sim, porque o PS num dilema, vai escolher a “Europa” e deixar o país ao PSD e CDS.

PS, BE e PCP ou reforçam de qualquer modo a coordenação política, que lhes permita ganhar algum ânimo colectivo e defrontar em conjunto e de forma capaz toda a tempestade que cai e vai cair sobre o governo, ou vão ter um lindo enterro. Lindo porque deve estar sol, mas só por isso.

SOBRE FERNANDO PESSOA

 Com a devida vénia, transcrevemos a interessante entrevista concedida ao jornal "Sol" por Teresa Rita Lopes:

Teresa Rita Lopes: ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’

Estuda a obra de Fernando Pessoa há meio século e já deu a volta aos 27 mil documentos do espólio por mais de uma vez. Teresa Rita Lopes, que acaba de publicar Livro(s) do Desassossego, fala sobre a sua relação com o poeta e sobre ‘o vandalismo’ da edição crítica.



Porque achou que era preciso mais uma edição do Livro do desassossego, quando já existem tantas?

A última foi uma edição crítica do Jerónimo Pizarro. Quando ele veio para Portugal, no início de 2000, foi meu aluno e do Fernando Cabral Martins, de maneira que acho que lhe pegámos esse interesse pelo Pessoa. Não ficou no meu grupo por razões que não vêm ao caso, e foi trabalhar para o grupo do atual orientador da edição crítica, que se chama Ivo Castro. Sabe disso, não sabe?

Não.

Quando fez 50 anos da morte do Pessoa, em 1985, o António Alçada Batista, que foi um grande obreiro da cultura, constituiu uma comissão para os festejos. E essa comissão decidiu que íamos fazer uma edição crítica do Pessoa, porque até aí cada um fazia as edições a seu bel-prazer. O Alçada Batista convidou-me, mas eu disse: ‘Não entro para esse convento’.

Porquê?

Porque não sou filóloga e aborrecem-me aquelas edições críticas, que são muito chatas, com muitas notas de rodapé. Gosto de fazer edições muito mais depuradas e que deem prazer ler. E foi então designado esse senhor, Ivo Castro, que é filólogo e professor na Universidade de Letras. Só que o homem é medievalista, de Pessoa não percebe patavina, e escreveu um livro em que diz que para se fazer uma edição crítica de Pessoa é preciso não perceber nada de Pessoa.

Para ter distanciamento?

Para ter uma objetividade científica. O que é um perfeito disparate, porque esse método só poderia ser aplicado a textos publicados em vida pelo autor. Antes do Ivo Castro, foi designada para fazer isso uma senhora italiana especialista em Literatura Portuguesa chamada Luciana Stegagno Picchio. E ela dizia-me: ‘Ó Terresa, vamos fazer isso’ [com sotaque italiano]. ‘Mas vamos fazer isso como?’. ‘Meto no computor’ [risos]. Nessa altura eu já tinha estado no espólio e sabia que aquilo é tremendamente difícil.

De decifrar?

Em 1990 publiquei dois calhamaços chamados Pessoa por Conhecer. É que toda a gente fala do Pessoa como se o conhecesse. Estava à procura desse livro para lhe mostrar. Então leia lá este manuscrito do Álvaro de Campos.

‘A alma humana é porca como…’

[Ri-se] Leia por cima que é mais fácil.

‘Um cu’.

O Pessoa faz isto: quando escolhe mesmo, risca o que está na linha corrida. Mas a maior parte das vezes não risca, e põe uma variante em cima, ao lado ou entre parêntesis. As edições críticas tratam da mesma forma a emenda e a variante. Aqui não faz diferença porque o que estava na linha corrida era ‘como um ânus’ e assim até fica mais forte. Agora leia o resto.

‘E a vantagem dos…’.

É o que está a pensar.

‘A vantagem dos cara****”?!

É isso mesmo. Uma das coisas que divertiu muito as pessoas é que na primeira edição crítica eles leram ‘canalhas’ porque acharam que o Pessoa não podia ter escrito um palavrão. Mas neste caso é mais pela curiosidade. No Alberto Caeiro é mais evidente. Eles assassinaram o Alberto Caeiro, com esse processo de confundir a variante com a emenda. Fazem as escolhas que o Pessoa não fez.

Assassinaram? Mas o que lá está não deixa de ser Pessoa…

Quando fazem uma edição crítica e dão notícia das variantes, tudo bem. Agora as edições que o Ivo Castro coordenou para o Expresso já não dão notícia da variante, portanto o texto fica perfeitamente definitivo, e é aquilo que os meninos vão levar para a escola e que os tradutores vão usar.  O Pessoa ainda anda por aí todo deturpado e deformado e é por isso que estou com um espírito de missão de o salvar do vandalismo da edição crítica.

Porque começou a fazer edições do Pessoa se dizia que não queria entrar para esse convento?

Em 1990, o David Mourão Ferreira, que eu estimava muito, chamou-me: ‘Teresa Rita, tem de fazer a crítica a este livro, ao Álvaro de Campos’. E eu disse-lhe: ‘Nem pense, tinha de ir a todos os originais e demorava dois anos.’ Só que ele era um homem inteligentíssimo e percebeu como havia de me convencer. ‘Se a Teresa Rita não fizer ninguém faz, e tem a obrigação cívica de o fazer’. Perante isso, rendi-me. Levei dois anos. Nessa altura era mais difícil porque tínhamos de ir para a Biblioteca Nacional, manusear aqueles papelinhos todos. E saiu uma edição minha do Álvaro de Campos, contestando a do Ivo Castro.

Pode falar-me sobre a sua experiência de lidar com os originais?

Antes de morrer, o Pessoa começou a arrumar os seus livros. Fez maços e esses maços estão hoje na Biblioteca Nacional como foram achados em casa dele. Quando foram arrolados na BN eles respeitaram isso. Agora o nosso trabalho de investigadores está muito facilitado. Já não precisamos de ir consultar os originais na Biblioteca Nacional porque muitos de nós temos um disco externo.

Com tudo digitalizado?

Sim, a senhora da BN deu isso aos investigadores. Depois os investigadores passaram aos seus discípulos – foi o meu caso. Hoje em dia todos os que trabalham em Pessoa têm isso. Às vezes é mesmo necessário ver o original, mas no computador a gente pode ampliar, de maneira que eu, de cada vez que faço um livro destes, volto sempre a ver os originais. Já dei a volta aos 27 mil e tal documentos mais de uma vez – estou muito distraída a ver aquilo. Ainda ontem tive o prazer de descobrir dois novos poemas do Ricardo Reis que estão metidos no meio de outras coisas. Às vezes ele escrevia até no rol da roupa suja, aproveitava todos os papelinhos, e nós temos que ver cada papelinho como um detetive, à lupa.

A caligrafia muda consoante o heterónimo que está a escrever?

É verdade que sim, porque ele faz questão de se despersonalizar. Isto tem qualquer coisa de espírita.

Como se o médium encarnasse o espírito da pessoa?

Ele fazia escrita mediúnica, escrita automática, a ver se os espíritos se manifestavam através dele. Veja aqui, isto é a assinatura dum espírito. Ele fez este poema e depois o espírito disse-lhe: ‘No good’ – não presta. Ele estava sempre nesse limiar entre acreditar e brincar com isso. Olhe este aqui: ele faz este poema e no fim assina ‘Vardur [um dos espíritos] + Pessoa’. E depois o Vardur diz-lhe assim: ‘This poem is yours, my boy’.

Além do espiritismo e da astrologia, Pessoa interessava-se por outras áreas?

Ele era um extraordinário estudioso. Deve ter havido poucas pessoas tão cultas neste país como ele. Porque ele vivia para essa ânsia de saber. Lia, lia, lia – já desde miúdo que era assim – comprava todos os livros que conseguia, depois vendia-os para comprar outros. Interessava-se por tudo. Escreveu sobre sociologia. Sobre as ciências da psique – meu Deus, o que ele escreveu! As pessoas pensam que ele era só um poeta, mas não. Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos. Ainda há muitos livros de Pessoa que deverão ser feitos.

Porquê o interesse pela psicologia?

A avó paterna dele morreu louca e ele assistia aos acessos de loucura da avó em pequenino. Toda a vida ele se preocupa com o que chama ‘génio e loucura’. O Pizarro até reuniu esses textos – ele é um grande trabalhador, não digo mal do meu aluno. Só tenho pena que tenha seguido o método da edição crítica.

Pode falar-me da sua relação com o Pessoa, como o descobriu?

A minha relação com esse rapaz… Descobri o Pessoa aí pelos meus 13 anos no Liceu de Faro. Ia à Biblioteca do liceu e depois tinha um caderninho onde escrevia os poemas de que gostava. O Álvaro de Campos é que me caiu no goto.

Mais tarde vai para França. A relação com Pessoa mantém-se?

Em Novembro de 63 a PIDE não sabia que eu tinha mudado de casa e foi-me prender à antiga casa. Entretanto fui avisada e raspei-me no dia seguinte no Sud Expresso. Em Paris nessa altura não se sabia quem era o Pessoa. O meu diretor de tese, um homem muito célebre na altura, quando eu lhe falei do Pessoa, disse: ‘Eu não conheço’. Hoje não há nenhum estudioso ou mesmo pessoa culta em França que se atreva a dizer que não sabe quem é o Pessoa.

Ainda assim podia estudar bem Pessoa a partir de Paris?

Comecei a vir a Portugal em 1969, depois de o Salazar cair da cadeira. E a primeira coisa que eu fiz foi ir para o baú, em 69. E de 69 a 75 mexi no espólio diretamente.

Recorda-se da primeira vez que foi ao baú?

Para consultar o que estava na casa da irmã tinha de ter uma autorização e fui ao ministério para a pedir. O senhor que lá estava não ma deu e eu estava a ver aquilo muito mal parado. O Veiga Simão, quando soube do que se tratava, mandou-me chamar e disse que sim. Comprei uma máquina de fotocópias muito complicada e comecei a ir para a casa da irmã, que me recebia muito bem.

Era a única pessoa lá?

Na altura aquilo estava a ser arrolado por umas senhoras da BN que nem sei donde vinham, mas tiveram um excelente papel, porque numeraram aquilo tudo. Aqui há tempos fiz para o SOL um texto sobre a segunda arca do Pessoa. Na altura descobriu-se que a família tinha ficado com dois mil e tal documentos que não vendeu à BN e que estava a vender em leilões. Isso é grave porque refazer a obra do Pessoa não é como refazer um puzzle. É refazer vários puzzles. Quando faltam peças é uma chatice.

É quase como uma escavação arqueológica?

Refazer a obra do Pessoa exige de nós gosto e o talento para a arqueologia, porque é reunir as pedras dispersas daqui e dali. As senhoras da BN davam-me os envelopes, e eu ficava ao pé delas a ver aquilo tudo, a fotocopiar e a assistir às conversas. O Pessoa, prevendo que ia morrer, deixou aquilo arrumado. Só que a irmã era uma senhora muito simpática e deixava toda a gente mexericar naquilo. Quando as arroladoras lá chegaram, aquilo já estava tudo misturado. Elas pegavam num papel, uma lia alto e a outra dizia assim: ‘O homem era mesmo maluco’.

A irmã partilhou memórias consigo?

A irmã disse-me uma coisa de que já desconfiava: que o Pessoa era extremamente pudico da sua obra e da sua vida particular. Falava pouco de si. A irmã dizia-me: ‘Ai, nós não fazíamos a mínima ideia de que o Fernando viesse a ser tão importante’. [risos] Eles não davam nada por ele.

Pessoa trabalhou até morrer?

Sim. O que vem na certidão de óbito é que morreu com uma cólica hepática. Agora estão a fazer diagnósticos depois de morto – em que eu não acredito muito – um médico até escreveu um livro sobre isso.

Temos dados suficientes para reconstituir um dia na vida dele?

Mais ou menos. Ele viveu toda a vida com apertos de dinheiro, apesar de ter recebido cinco contos de réis do prémio da Mensagem. Tinha de ganhar o pão com o suor do rosto. Simplesmente exigia não ter horários fixos. Era a sua liberdade. Como era muito conceituado pelos patrões – escrevia cartas comerciais em francês e inglês – além do mais tinha feito um curso comercial no último ano em que esteve em Durban, 1904.

Era um bom funcionário?

Os patrões prezavam-no imenso, davam-lhe muito valor. Mas ele queria ganhar à peça, não ganhava ao mês nem à semana, para ter a liberdade de ir lá quando lhe apetecia. Passava pelos escritórios – tinha mais do que um – para fazer as cartas que deixavam para ele. Mas tinha crises do que ele chamava neurastenia – uma vez escreveu a um amigo: ‘Tive uma crise de neurastenia que me atou o cérebro’ – havia períodos em que não podia trabalhar. Ele foi um homem muito infeliz, de certa maneira.

Mas também deve ter tido momentos de grande exaltação criativa e satisfação.

A gente percebe pelos manuscritos que ele escrevia num frenesi, numa exaltação. A sua mão não acompanhava a vertigem do seu pensamento. Devia ser aquilo que chamam um ciclotímico [alguém que alterna períodos de euforia com períodos de depressão].

Como é que consegue isto nas horas livres? Roubava ao sono?

Ele normalmente ia à tarde. Provavelmente escrevia à noite. E tinha insónias. Por isso é que não durou muito tempo. Além do mais curtia as suas bebedeiras.

Em casa?

Em casa. Aliás ninguém o via bêbedo. Conheciam-no por isso. Às vezes levantava-se do escritório e ia beber um bagaço durante as horas de trabalho. Mas isso deixava-o imperturbável.


domingo, 19 de fevereiro de 2017

O ANTIGO TESTAMENTO

Frederico Lourenço
Porquê o Antigo Testamento grego?

Eu diria em primeiro lugar porque, graças à sua maravilhosa urdidura literária e ao seu grande interesse histórico, o Antigo Testamento grego é de inestimável importância para o estudo diacrónico do Cristianismo. É a partir da versão grega do Antigo Testamento que Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a Escritura judaica. Paulo, por seu lado, é um profundo conhecedor do Antigo Testamento grego e é com base nele que está construída a sua teologia. Na verdade, a primeira Bíblia das primitivas comunidades cristãs foi justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua da Igreja romana a partir do final do século II, quando pela primeira vez houve um bispo de Roma falante de latim: o Papa São Vítor, que morreu em 199). Para todos os padres da Igreja que escreveram em grego até ao fim da Idade Média, a Bíblia dos Setenta («Septuaginta») era, simplesmente, a Bíblia.

Mas há outro aspecto enriquecedor, que faz do Antigo Testamento grego um universo (até hoje desconhecido em língua portuguesa) que é fascinante conhecer: o facto de o texto da versão grega nos trazer subtis (e por vezes flagrantes) diferenças relativamente ao texto hebraico. Ler o livro de Génesis ou o Cântico dos Cânticos por esta versão é ler um texto que nos revela novas iluminações. Recorde-se que, mesmo em meios da diáspora judaica no século I da nossa era (e para intelectuais judeus de comprovado discernimento como Fílon de Alexandria), “a versão grega da Escritura judaica era tida como inspirada e correcta em todos os aspectos e o texto dos Septuaginta era frequentemente considerado melhor do que o original hebraico” (E. P. Sanders, Paul, 2015, p. 27). Assim, para estudiosos da Escritura Sagrada, do Judaísmo e do Cristianismo, o Antigo Testamento grego é um marco da cultura universal que – pela seu valor religioso, estético e histórico – urge conhecer.

Como se isso não bastasse: por um acaso do destino – e por estranho que isso possa parecer a muitas pessoas –, o texto grego do Antigo Testamento chegou até nós numa forma mais antiga do que a forma sob a qual nos chegou o texto hebraico completo (não obstante o texto hebraico ser naturalmente anterior e – numa forma diferente da que chegou completa até nós – ter servido de base ao texto grego).

Na verdade, o mais antigo manuscrito completo do texto hebraico (o Codex Leningradensis, de Sampetersburgo) é do início do século XI d.C. (a data foi registada pelo copista: 1008).

Por outro lado, os dois manuscritos mais antigos que nos preservam o Antigo Testamento grego foram copiados 600 anos antes do Codex Leningradensis, pois são dos séculos IV d.C.

Ora o afastamento temporal de 600 anos entre as duas versões do Antigo Testamento (a grega e a hebraica) explica, em parte, as muitas diferenças de pormenor (e outras mais avultadas) que detectamos entre o texto grego dos Septuaginta e o texto do Tanakh (Antigo Testamento hebraico). Estas diferenças (pelo menos as mais relevantes e expressivas) são comentadas nas notas que acompanham a minha tradução, pois as divergências entre o texto grego e o texto hebraico do Antigo Testamento constituem um tema de primacial importância para todos aqueles que se interessam pela história do judaísmo e do cristianismo.

Sobretudo para historiadores dos primeiros séculos do cristianismo, o conhecimento do Antigo Testamento na versão dos Septuaginta afigura-se absolutamente obrigatório. Isto porque o Antigo Testamento pressuposto pelo Novo Testamento, e citado no Novo Testamento, é o Antigo Testamento grego – e não o hebraico.

Colocando a questão da forma mais objectiva possível: só a quem lia o Antigo Testamento em grego é que ocorreria aduzir, como comprovativo profético da virgindade de Maria, a frase de Isaías 7:14 sobre a virgem que «terá no ventre um filho e o parturirá» (cf. Mateus 1:23). Só quem lia o Antigo Testamento em grego é que confiaria, como Paulo faz três vezes (Romanos 4:3, 9; Gálatas 3:6), que a forma verbal por ele citada a partir de Génesis 15:6 está na voz passiva. A realidade é que, no texto hebraico de Isaías 7:14, não está a palavra «virgem»; nem no texto hebraico de Génesis 15:6 encontramos a forma verbal, repetidamente citada por Paulo, na voz passiva. Tanto Mateus como Paulo estão a fundamentar o seu próprio texto com base em realidades linguísticas que não existem no Antigo Testamento hebraico. Só existem no Antigo Testamento grego: no texto dos Septuaginta.
Ora as passagens referidas do Novo Testamento (a que poderíamos juntar uma lista infindável de outras) mostram-nos quanto os primeiros autores cristãos estavam condicionados pela sua leitura do Antigo Testamento em grego. Assim, para percebermos, historicamente, o enquadramento conceptual dos primeiros cristãos, o estudo dos Septuaginta é nada menos que imprescindível. É lendo aquilo que os autores do Novo Testamento liam que compreenderemos melhor o que eles escreveram.




sábado, 18 de fevereiro de 2017

LA QUERELLE DE L'ISLAMOPHOBIE

Pela oportunidade, transcrevemos do nº 2726 (2 a 8 de Fevereiro 2017) de "L'OBS" a seguinte entrevista:

La querelle de l'islamophobie : Pascal Bruckner face à Olivier Roy

 

C'est une bataille sémantique à travers laquelle se joue notre regard sur l'islam en France. Le politologue Olivier Roy a accepté de dialoguer sur la notion d'“islamophobie” avec l'essayiste Pascal Bruckner , qui publie “Un racisme imaginaire”.





Islamophobie : littéralement «peur de l'islam». Depuis quinze ans, la notion divise la pensée française. Pour ceux qui en ont fait leur cheval de bataille (en particulier le CCIF, le Collectif contre l'Islamophobie en France), elle permet de désigner une nouvelle forme de racisme qui ne dit pas son nom. Pour ceux qui la contestent (Gilles Kepel, Caroline Fourest, Alain Finkielkraut…), elle est une construction des islamistes, une «arme d'intimidation massive», estime Pascal Bruckner, destinée à faire taire toute critique sur l'islam.


 L'auteur du «Sanglot de l'homme blanc» publie ces jours-ci un nouvel essai virulent, «Un racisme imaginaire» (Grasset), pour réprouver, voire bannir, l'usage du mot. Nous avons proposé au grand spécialiste de l'islam Olivier Roy - qui ne s'était jamais encore exprimé sur le sujet - de venir débattre avec lui. Si tous deux pointent les failles du concept, ils défendent deux visions diamétralement opposées des réalités qu'il recouvre et de l'évolution de l'islam dans nos sociétés. L'un nous prédit des heures toujours plus sombres, l'autre nous donne les raisons d'espérer une paix sociale. Entretien.

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