Frederico Lourenço
Porquê o Antigo Testamento grego?
Eu diria em primeiro lugar porque, graças à sua maravilhosa urdidura literária e ao seu grande interesse histórico, o Antigo Testamento grego é de inestimável importância para o estudo diacrónico do Cristianismo. É a partir da versão grega do Antigo Testamento que Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a Escritura judaica. Paulo, por seu lado, é um profundo conhecedor do Antigo Testamento grego e é com base nele que está construída a sua teologia. Na verdade, a primeira Bíblia das primitivas comunidades cristãs foi justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua da Igreja romana a partir do final do século II, quando pela primeira vez houve um bispo de Roma falante de latim: o Papa São Vítor, que morreu em 199). Para todos os padres da Igreja que escreveram em grego até ao fim da Idade Média, a Bíblia dos Setenta («Septuaginta») era, simplesmente, a Bíblia.
Mas há outro aspecto enriquecedor, que faz do Antigo Testamento grego um universo (até hoje desconhecido em língua portuguesa) que é fascinante conhecer: o facto de o texto da versão grega nos trazer subtis (e por vezes flagrantes) diferenças relativamente ao texto hebraico. Ler o livro de Génesis ou o Cântico dos Cânticos por esta versão é ler um texto que nos revela novas iluminações. Recorde-se que, mesmo em meios da diáspora judaica no século I da nossa era (e para intelectuais judeus de comprovado discernimento como Fílon de Alexandria), “a versão grega da Escritura judaica era tida como inspirada e correcta em todos os aspectos e o texto dos Septuaginta era frequentemente considerado melhor do que o original hebraico” (E. P. Sanders, Paul, 2015, p. 27). Assim, para estudiosos da Escritura Sagrada, do Judaísmo e do Cristianismo, o Antigo Testamento grego é um marco da cultura universal que – pela seu valor religioso, estético e histórico – urge conhecer.
Como se isso não bastasse: por um acaso do destino – e por estranho que isso possa parecer a muitas pessoas –, o texto grego do Antigo Testamento chegou até nós numa forma mais antiga do que a forma sob a qual nos chegou o texto hebraico completo (não obstante o texto hebraico ser naturalmente anterior e – numa forma diferente da que chegou completa até nós – ter servido de base ao texto grego).
Na verdade, o mais antigo manuscrito completo do texto hebraico (o Codex Leningradensis, de Sampetersburgo) é do início do século XI d.C. (a data foi registada pelo copista: 1008).
Por outro lado, os dois manuscritos mais antigos que nos preservam o Antigo Testamento grego foram copiados 600 anos antes do Codex Leningradensis, pois são dos séculos IV d.C.
Ora o afastamento temporal de 600 anos entre as duas versões do Antigo Testamento (a grega e a hebraica) explica, em parte, as muitas diferenças de pormenor (e outras mais avultadas) que detectamos entre o texto grego dos Septuaginta e o texto do Tanakh (Antigo Testamento hebraico). Estas diferenças (pelo menos as mais relevantes e expressivas) são comentadas nas notas que acompanham a minha tradução, pois as divergências entre o texto grego e o texto hebraico do Antigo Testamento constituem um tema de primacial importância para todos aqueles que se interessam pela história do judaísmo e do cristianismo.
Sobretudo para historiadores dos primeiros séculos do cristianismo, o conhecimento do Antigo Testamento na versão dos Septuaginta afigura-se absolutamente obrigatório. Isto porque o Antigo Testamento pressuposto pelo Novo Testamento, e citado no Novo Testamento, é o Antigo Testamento grego – e não o hebraico.
Colocando a questão da forma mais objectiva possível: só a quem lia o Antigo Testamento em grego é que ocorreria aduzir, como comprovativo profético da virgindade de Maria, a frase de Isaías 7:14 sobre a virgem que «terá no ventre um filho e o parturirá» (cf. Mateus 1:23). Só quem lia o Antigo Testamento em grego é que confiaria, como Paulo faz três vezes (Romanos 4:3, 9; Gálatas 3:6), que a forma verbal por ele citada a partir de Génesis 15:6 está na voz passiva. A realidade é que, no texto hebraico de Isaías 7:14, não está a palavra «virgem»; nem no texto hebraico de Génesis 15:6 encontramos a forma verbal, repetidamente citada por Paulo, na voz passiva. Tanto Mateus como Paulo estão a fundamentar o seu próprio texto com base em realidades linguísticas que não existem no Antigo Testamento hebraico. Só existem no Antigo Testamento grego: no texto dos Septuaginta.
Ora as passagens referidas do Novo Testamento (a que poderíamos juntar uma lista infindável de outras) mostram-nos quanto os primeiros autores cristãos estavam condicionados pela sua leitura do Antigo Testamento em grego. Assim, para percebermos, historicamente, o enquadramento conceptual dos primeiros cristãos, o estudo dos Septuaginta é nada menos que imprescindível. É lendo aquilo que os autores do Novo Testamento liam que compreenderemos melhor o que eles escreveram.
Eu diria em primeiro lugar porque, graças à sua maravilhosa urdidura literária e ao seu grande interesse histórico, o Antigo Testamento grego é de inestimável importância para o estudo diacrónico do Cristianismo. É a partir da versão grega do Antigo Testamento que Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a Escritura judaica. Paulo, por seu lado, é um profundo conhecedor do Antigo Testamento grego e é com base nele que está construída a sua teologia. Na verdade, a primeira Bíblia das primitivas comunidades cristãs foi justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua da Igreja romana a partir do final do século II, quando pela primeira vez houve um bispo de Roma falante de latim: o Papa São Vítor, que morreu em 199). Para todos os padres da Igreja que escreveram em grego até ao fim da Idade Média, a Bíblia dos Setenta («Septuaginta») era, simplesmente, a Bíblia.
Mas há outro aspecto enriquecedor, que faz do Antigo Testamento grego um universo (até hoje desconhecido em língua portuguesa) que é fascinante conhecer: o facto de o texto da versão grega nos trazer subtis (e por vezes flagrantes) diferenças relativamente ao texto hebraico. Ler o livro de Génesis ou o Cântico dos Cânticos por esta versão é ler um texto que nos revela novas iluminações. Recorde-se que, mesmo em meios da diáspora judaica no século I da nossa era (e para intelectuais judeus de comprovado discernimento como Fílon de Alexandria), “a versão grega da Escritura judaica era tida como inspirada e correcta em todos os aspectos e o texto dos Septuaginta era frequentemente considerado melhor do que o original hebraico” (E. P. Sanders, Paul, 2015, p. 27). Assim, para estudiosos da Escritura Sagrada, do Judaísmo e do Cristianismo, o Antigo Testamento grego é um marco da cultura universal que – pela seu valor religioso, estético e histórico – urge conhecer.
Como se isso não bastasse: por um acaso do destino – e por estranho que isso possa parecer a muitas pessoas –, o texto grego do Antigo Testamento chegou até nós numa forma mais antiga do que a forma sob a qual nos chegou o texto hebraico completo (não obstante o texto hebraico ser naturalmente anterior e – numa forma diferente da que chegou completa até nós – ter servido de base ao texto grego).
Na verdade, o mais antigo manuscrito completo do texto hebraico (o Codex Leningradensis, de Sampetersburgo) é do início do século XI d.C. (a data foi registada pelo copista: 1008).
Por outro lado, os dois manuscritos mais antigos que nos preservam o Antigo Testamento grego foram copiados 600 anos antes do Codex Leningradensis, pois são dos séculos IV d.C.
Ora o afastamento temporal de 600 anos entre as duas versões do Antigo Testamento (a grega e a hebraica) explica, em parte, as muitas diferenças de pormenor (e outras mais avultadas) que detectamos entre o texto grego dos Septuaginta e o texto do Tanakh (Antigo Testamento hebraico). Estas diferenças (pelo menos as mais relevantes e expressivas) são comentadas nas notas que acompanham a minha tradução, pois as divergências entre o texto grego e o texto hebraico do Antigo Testamento constituem um tema de primacial importância para todos aqueles que se interessam pela história do judaísmo e do cristianismo.
Sobretudo para historiadores dos primeiros séculos do cristianismo, o conhecimento do Antigo Testamento na versão dos Septuaginta afigura-se absolutamente obrigatório. Isto porque o Antigo Testamento pressuposto pelo Novo Testamento, e citado no Novo Testamento, é o Antigo Testamento grego – e não o hebraico.
Colocando a questão da forma mais objectiva possível: só a quem lia o Antigo Testamento em grego é que ocorreria aduzir, como comprovativo profético da virgindade de Maria, a frase de Isaías 7:14 sobre a virgem que «terá no ventre um filho e o parturirá» (cf. Mateus 1:23). Só quem lia o Antigo Testamento em grego é que confiaria, como Paulo faz três vezes (Romanos 4:3, 9; Gálatas 3:6), que a forma verbal por ele citada a partir de Génesis 15:6 está na voz passiva. A realidade é que, no texto hebraico de Isaías 7:14, não está a palavra «virgem»; nem no texto hebraico de Génesis 15:6 encontramos a forma verbal, repetidamente citada por Paulo, na voz passiva. Tanto Mateus como Paulo estão a fundamentar o seu próprio texto com base em realidades linguísticas que não existem no Antigo Testamento hebraico. Só existem no Antigo Testamento grego: no texto dos Septuaginta.
Ora as passagens referidas do Novo Testamento (a que poderíamos juntar uma lista infindável de outras) mostram-nos quanto os primeiros autores cristãos estavam condicionados pela sua leitura do Antigo Testamento em grego. Assim, para percebermos, historicamente, o enquadramento conceptual dos primeiros cristãos, o estudo dos Septuaginta é nada menos que imprescindível. É lendo aquilo que os autores do Novo Testamento liam que compreenderemos melhor o que eles escreveram.
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