terça-feira, 23 de agosto de 2016
A IMUNIDADE DIPLOMÁTICA
A forma como a comunicação social, maxime as televisões, tem tratado o caso da agressão violenta a um jovem em Ponte de Sor, presumivelmente efectuada pelos filhos do embaixador iraquiano em Lisboa, como, aliás, os próprios já reconheceram, suscita-me alguns comentários, face aos inúmeros disparates, motivados por ignorância ou má-fé, que vêm sendo produzidos nos últimos dias.
Nota-se subliminarmente, na informação transmitida, a intenção de provocar uma onda de indignação anti-árabe e anti-islâmica, que em nada aproveitará aos portugueses. Recorde-se que o sentimento islamófobo, larvar e posteriormente assumido em alguns países europeus, com maior acuidade em França, conduziu a resultados que são infelizmente bem conhecidos.
Tem sido colocada a ênfase na questão da imunidade diplomática. A esse respeito, conviria que os opinantes lessem o que escreveu já há alguns anos, o embaixador José Calvet de Magalhães, no seu Manual Diplomático.
As prerrogativas dos Agentes Diplomáticos, reguladas durante anos pelo uso, foram consagradas na "Convenção de Viena sobre relações diplomáticas", de 1961. Gozam os diplomatas de:
1) Inviolabilidade pessoal
2) Imunidades (de jurisdição penal, de jurisdição civil e administrativa, e de execução
3) Isenções (fiscais, de direitos aduaneiros, de prestações de seguro social e de prestações de carácter pessoal
4) Liberdade de circulação e trânsito
5) Uso da bandeira e escudo nacionais
6) Facilidades
No caso vertente, interessa-nos a imunidade de jurisdição penal. Segundo o artº 31º da Convenção de Viena: "O agente diplomático goza de imunidade de jurisdição penal do Estado receptor".
Todavia, as pessoas agora em causa não são agentes diplomáticos, são os filhos de um agente diplomático, o embaixador. A esse respeito, estabelece a Convenção de Viena no § 1º do artº 37º: "Os membros da família de um agente diplomático que com ele vivam gozarão dos privilégios e imunidades mencionadas nos artigos 29º a 36º, desde que não sejam nacionais do Estado receptor".
Os filhos do embaixador do Iraque encontram-se, assim, ao abrigo da imunidade diplomática.
Sobre o instituto da persona non grata, dispõe a Convenção de Viena no artº 9º: "O Estado receptor poderá a qualquer momento, e sem ser obrigado a justificar a sua decisão, notificar ao Estado acreditante que o chefe de missão ou qualquer membro do pessoal diplomático da missão é persona non grata...O Estado acreditante, conforme o caso, retirará a pessoa em questão ou dará por terminadas as suas funções na missão". Esta medida aplica-se quando se verifique violação repetida ou grave dos deveres do agente diplomático, mas a Convenção não indica sanções específicas quanto à natureza da violação. As declarações de personae non gratae são utilizadas como último recurso quando esgotados os outros meios de resolução dos casos.
Não se encontrando expressamente contempladas na Convenção, tanto quanto sei, as violações por parte dos familiares do agente diplomático, presumo que se aplicará o estatuído para os mesmos quanto às imunidades concedidas, isto é, a declaração de persona non grata ou equivalente.
Não conheço as circunstâncias da agressão ou agressões cometidas em Ponte de Sor, salvo o que tem sido veiculado pela comunicação social e algo do que ouvi, na televisão, pela boca dos filhos do embaixador. Presumo, aliás, que seja matéria confinada ao segredo de justiça.
Mas a enxurrada de notícias entretanto veiculada pelos órgãos de informação, como, por exemplo, que os rapazes já estariam fora de Portugal, o que se confirmou ser mentira, leva-me a rodear-me das maiores cautelas na apreciação do caso.
Apesar de se afigurar evidente que os autores da agressão, de inusitada violência, foram os filhos do embaixador, conforme, aliás, declarações dos mesmos, tal não impede, num Estado de direito, que qualquer indivíduo seja presumido inocente até sentença transitada em julgado.
Que eu saiba, ainda nem sequer foi deduzida acusação, e o que se tem assistido é a uma condenação na praça pública e nas redes sociais. A comunicação social, com relevo para as televisões, tem-se especializado nos últimos anos em julgamentos populares, que dificultam a isenta aplicação da justiça. Há casos paradigmáticos, o mais célebre, se bem me recordo, foi o processo Casa Pia. Uma sociedade que julga os cidadãos na praça pública se não está morta, está moribunda.
Estas considerações em nada concorrem para uma desculpabilização dos agressores mas tão só para a defesa de uma correcta administração da justiça.
Quando existir uma acusação, o que é suposto aconteça com brevidade, deverá o Estado acreditante (o Iraque) retirar a imunidade aos rapazes, para poderem ser julgados em Portugal. Tal não acontecendo, terá o Estado português (trata-se de uma matéria de Estado) de extrair as devidas ilacções e utilizar os mecanismos previstos nas relações internacionais.
A terminar, não quero deixar de registar uma interrogação já formulada por muita gente: se os presumíveis agressores não fossem iraquianos, se fossem, por exemplo, filhos do embaixador americano ou do embaixador de um país europeu ocidental em Lisboa, seria a mesma a reacção inflamada da imprensa e das redes sociais? Suponho que não. Como escrevi acima, está a desenvolver-se na nossa sociedade um sentimento de islamofobia, de que um dos mais recentes episódios é a contestação da construção de uma mesquita na Mouraria. Devemos evitar atitudes extremistas se não quisermos que os extremismos se voltem depois contra nós.
NOTA: Portugal aderiu à Convenção de Viena de 1961 em 27 de Março de 1968, tendo a mesma entrado em vigor em relação ao nosso país em 11 de Outubro do mesmo ano. O texto oficial português da Convenção foi publicado pelo Decreto-Lei nº 49.295, de 27 de Março de 1968.
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2 comentários:
Bravo, Júlio Magalhães!
Os seus textos fazem-me sentir menos excluída, pois cada vez mais sou "obrigada" (passo o exagero) a penitenciar-me por olhar o mundo como olho, sem acocoramento a leituras primárias, "oficiais", discriminatórias, fascizantes.
Obrigada por trazer luz, inteligência e dignidade ao debate público.
Saudades + beijo
a. madureira
Muito obrigado pelo comentário, Ana.
Vou fazendo o que sei e o que posso.
Beijo
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