O antropólogo e filósofo argelino Malek Chebel, autor de vasta e notável obra, acabou de publicar um pequeno volume,
Linconscient de l'islam, onde denuncia as derivas do mundo arabo-muçulmano actual.
Começa o consagrado ensaísta por referir que a terra do islão é simultaneamente uma terra de paz (
dar as-salam) e uma terra de guerra (
dar al-harb), que numa tradução mais literal seria "casa da paz" e "casa da guerra". O que conduz directamente à guerra santa, desencadeada sucessivamente pelos califas das diversas dinastias e pelos sultões otomanos, até à queda do califado em 1924. Noto um lapso de Chebel na primeira página: refere o autor a queda do califado em 1923, mas essa foi a data da proclamação da república turca; o califado só foi abolido em 1924.
Sustenta Chebel que essa guerra "permanente" não tinha por fim apenas a islamização do mundo pagão, mas igualmente a satisfação de um desejo de poder e de um desejo sexual.«...seule la première génération de califes, celle d'Umar, d'Uthman et d'Ali ne semble pas avoir eu recours à ce moyen inattendu pour enrichir ses harems.» Continuando o seu raciocínio, Chebel afirma: «Les objectifs de la conversion à l'islam, pour vertueux qu'aient pu être naguère ses prédicats, se sont progressivement vidés de leur sens religieux. Aussi le projet spirituel initial s'est-il transformé en un simple festin céleste, avec ses récompenses ici-bas, ses objectifs de nombre et d'amélioration du pedigree de la classe au pouvoir.»
O livro compõe-se de cinco capítulos: La guerre pour les femmes; Idéologies du kamikaze ordinaire; Du Ma(n)ternel; Livres interdits et autodafé; Imolation ou sacrifice.
No primeiro capítulo, especialmente dedicado às mulheres, o autor entende que para compreender a génese da guerra santa (
jihad) há que recuar à organização elementar do harém, com o seu código endógeno, a sua violência simbólica e o seu mimetismo. O harém, apartamento exclusivo reservado às mulheres, opõe-se ao serralho, o palácio do sultão (na Turquia antiga), ainda que, por ficar integrado no espaço residencial soberano, tenha dado lugar a interpretações incorrectas ao longo da história, como é o caso do título da ópera de Mozart,
O Rapto do Serralho. A palavra harém só entrou no dicionário francês em meados do século XIX. Segundo Chebel, o harém, instituição árabe, turca e persa, continua, sem a esgotar, a ideia do gineceu que os gregos desenvolveram no passado. O autor considera que o harém pode ser definido de diferentes maneiras: a dimensão histórica, a dimensão romântica, a regra do equilíbrio, a regra do desejo, a dimensão política, a dimensão demográfica, a regra do desvio. Não cabe neste espaço especificar estas noções.
Segundo o Corão, a poligamia da
Jahiliyyah, a época pré-islâmica, ficou reduzida a uma tetragamia, ainda que a possibilidade de quatro esposas legais não exclua, naturalmente, a existência de concubinas. Não é referida neste livro a existência no serralho de muitos rapazes, especialmente cativos de guerra, para serviço íntimo dos soberanos e altos dignitários, mas Chebel alude ao facto em outros volumes da sua vasta obra. Os janízaros (
yeniçeri = nova força), corpo de elite otomano, que eram adolescentes cristãos raptados às suas famílias, antes de integrarem o exército na idade adulta, serviam também para a satisfação dos desejos dos seus senhores. Mas este capítulo, o mais longo do livro e que prepara o capítulo seguinte, trata especialmente das mulheres. E do poder que elas detiveram no mundo arabo-muçulmano, especialmente na Sublime Porta, como favoritas e mães de sultões (sultanas Valide), sem esquecer que o harém não era um compartimento tão estanque que não permitisse, em condições especiais, a entrada de terceiros, donde o elevado número de gravidezes impossíveis de esconder. Roxelane, mulher de Solimão, o Magnífico, exerceu uma influência notória, a ponto de mandar matar o favorito e grão-vizir do marido, Ibrahim Pasha, e o próprio filho mais velho (de uma outra esposa) de Solimão para garantir a sucessão do seu próprio terceiro filho (Selim II). Deste Selim II, chamado "o Bêbado", se diz que procedeu à conquista de Chipre não para dilatar a fé mas por causa do bom vinho da ilha.
Com o advento da modernidade o harém foi perdendo a sua importância tornando-se residual. Quando Abdul Hamid II, o último sultão otomano a exercer os seus poderes autocráticos, foi deposto em 1909 pela Revolução dos Jovens Turcos, tinha apenas no seu harém seis mulheres e duas escravas negras, ao contrário das dezenas que lhe eram atribuídas pela vulgata.
O segundo capítulo, muito breve, trata do kamikaze vulgar. A ideia do kamikaze (vento divino), divulgada aquando dos ataques suicidas dos aviadores japoneses na Segunda Guerra Mundial, é contrária tanto ao Decálogo como ao Corão, que recusa o suicídio como solução final e priva de sepultura os que, evitando a fogueira dos homens, se encontrarão inevitavelmente na Gehena. Afirma Chebel que foi necessário o 11 de Setembro para realizarmos a lógica assassina de que se alimenta o kamikaze. Julgo que os jovens-bomba palestinianos já nos haviam interpelado muito antes na sua luta por um Estado nacional. Séneca e Plutarco defenderam o suicídio mas a maioria dos filósofos opôs-se-lhe. O autor refere que, segundo Albert Camus, existe um laço directo entre o nihilismo e o crime: «Celui qui nie tout et s'autorise à tuer, Sade, le dandy meutrier, l'Unique impitoyable, Karamazov, les zélateurs du brigand déchaîné, le surréaliste qui tire dans la foule, revendiquent en somme la libérté totale, le déploiement sans limites de l'orgueil humain.» (
L'Homme révolté). Noto que a citação no livro do período de Camus foi transcrita com imprecisão. Por isso consultei o original e apresentei a versão exacta do escritor francês.
A interpretação do Corão que os djihadistas invocam para os ataques suicidas fundamenta-se no versículo 154 da Sura II, mas o contexto actual é profundamente distinto do que existia no começo da islamização, além do que um muçulmano não pode matar outros muçulmanos, conceito hoje olimpicamente ignorado.
O terceiro capítulo debruça-se sobre a relação mãe/filho masculino. É um dos grandes temas, quase sempre tabu, da civilização islâmica. Escreve Chebel: «Le ma(n)ternel est le nom que je donne à un processus d'introjection symbolique, ou de "dévoration", de l'enfant mâle par sa propre mère pour que celle-ci puisse se construire par son truchement et trouve sa place de mère dans le rhizome familial. Le "n" de manternel symbolise le sentiment éprouvé par la mère qui fonctionne comme une "mante religieuse", au lieu d'adopter un sentiment maternel ordinaire.»
Nesta relação, Chebel refere os estudos que analisaram a passagem da cultura árabe entre a
Jahiliyyah e o islão, entre o paganismo beduíno e o monoteísmo árabe, uma mutação que foi sentida como um sismo, provocando grane número de resistências.
Uma passagem: «Dans la mesure où la femme arabe ou musulmane ne peut exister en tant qu'individu que lorsqu'elle a mis au monde des enfants mâles et que ces mêmes enfants ont à leur tour enfanter d'autres enfants mâles, il apparaît évident que la relation mère-enfant s'inverse au fil du temps, pour devenir une relation enfant-mère.»
Ou: «La "manternalisation" est un type de consommation symbolique de la mère à l'égard de son enfant, voire dans certains cas - toujours symboliques -, le mimétisme d'une relation anthropologique à une échelle plus large, héréditaire. Précisons ici que le tabou de l'inceste n'en est pas moins posé.»
O capítulo quarto fala-nos do "inferno das bibliotecas árabes", na medida em que o Corão é o único livro que vale a pena ser chamado livro. É referida a
fatwa lançada pelo ayatollah Khomeiny em 1989 a propósito de
Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie. Escreve o autor: «Ce qui dérange le plus dans la question des versets sataniques tient à un bout de phrase, qui aurait été dicté par Satan au Prophète et que le Coran avait formulé une premiére fois de cette manière, avant de l'abroger aussitôt: "Avez-vous considéré Al-Lat, Al-'Uzza et Manat, cette troisième (idole)? Ce sont de 'sublimes déesses' et leur intercession est certes souhaitée"» (
Corão, LIII, 19-21). E segue-se toda uma explicação, aliás exaustivamente tratada à época da "excomunhão" do livro.
Mesmo nos nossos dias, e sem a virulência de Khomeiny, o Ministério da Informação e o Ministério dos Assuntos Religiosos e dos Waqfs argelinos, organizadores do Salão Internacional do Livro de Argel, em 2007, impediram, sem o mínimo pretexto, a venda dos livros de Abû-l-'Ala al-Ma'arri, o célebre poeta cego da Síria, individualista, agnóstico e vegetariano (m. 1057).
«Les livres suspectés de déviationnisme ne portent pas forcément sur le religieux. La politique est aussi l'une des causes de friction, sans compter que l'État s'en mêle assez fréquemment... Après la religon, et la politique, la sexualité constitue la troisième mauvaise veine qui exaspère les censeurs et les moralistes.» Chebel refere também Al-Jâhiz e os mutazilitas, Al-Mutanabbi, um dos maiores poetas árabes, assassinado em 965, Abu Nawas e Omar Khayyam. Averróis (Ibn Rushd), o célebre "comentador" de Aristóteles, acabou a vida desterrado, e se pior não lhe aconteceu tal deveu-se à protecção dos califas almohadas. Mahmud Muhammad Taha e Farag Foda, ambos do século XX, morreram assassinados. O próprio Taha Hussein (1889-1973), o grande escritor cego egípcio, considerado o decano da literatura árabe, foi perseguido pelos académicos de Al-Azhar, e não fora o seu imenso prestígio, teria sofrido as consequências da sua independência de espírito.
Tudo isto, sem esquecer
As Mil e Uma Noites, o livro "mais obsceno" alguma vez escrito, aos olhos de alguns moralistas hipócritas e impostores, e cuja introdução no Ocidente se deve a Antoine Galland (1646-1715), que redescobriu esses contos maravilhosos e os traduziu do árabe para francês. Há alguns anos, uma associação egípcia, Advogados sem Fronteiras, tentou interditar a sua publicação, reclamando-se do artigo 178 do antiquíssimo Código Penal Egípcio, felizmente sem êxito. Quem, no mundo, não conhece Sheherazade, Sindbad, o marinheiro, Zumurud (que serviu de fio condutor do filme homónimo de Pasolini), Aladino e a lâmpada maravilhosa, Ali Baba e os quarenta ladrões?
Conclui Chebel: «Il faut opérer une séparation étanche entre le pouvoir temporel et le pouvoir intemporel, renvoyer la religion et les religieux dans leurs mosquées, et réévaluer le rôle du politique et de ses prérrogatives.» Vasto programa, certamente difícil de executar.
O quinto e último capítulo trata da imolação ou sacrifício, evocando a imolação pelo fogo, em 2011, do vendedor ambulante tunisino Mohammed Bouazizi, que Chebel trata de "diplômé", versão então largamente difundida mas que não corresponde à verdade. Este suicídio, que pôs fim ao regime de Ben Ali, foi objecto de vasta propaganda mas nunca se esclareceram, exactamente, como normalmente acontece neste género de situações, as circunstâncias precisas em que ocorreu o caso.
Lembra Chebel que o islão proíbe o suicídio (
Corão, IV, 29-30), embora existam versículos passíveis de interpretações distintas, como referimos acima. Neste capítulo trata o autor, ainda que de forma assaz confusa, pois coexistem as versões do
Génesis e do
Corão, do sacrifício exigido a Abrahão de seu filho Isaac ou Ismaïl, conforme o cristianismo ou o islão. E também dos sacrifícios animais e das suas proibições.
Conclui Malek Chebel: «Cet
opus sur
L'inconscient de l'islam est une page ouverte sur tous les artefacts, les strates et les éléments psychiques qui restent inexplorés, car soumis au tabou implacable d'un certain islam, que le Coran semble résumer par cette image: "sourds, muets, aveugles" (
summûn, bûkmûn, 'ûmyûn) (II,18). «Le Prophète n'a-t-il pas dit dans un hadith
qûdsi, c'est-à-dire inspiré par Dieu: "Allah a voulu se faire connaître, il a créé le monde pour que l'homme, saisi de sa Sublime Beauté, puisse le vénérer à sa guise.»
«Ici s'achèvent ces réflexions sur l'interdit, la faute et la transgression en islam.»
Ainda que constituindo uma abordagem importante sobre alguns dos temas mais delicados do islão, parece-me que Malek Chebel não foi tão cuidadoso no tratamento dos assuntos desenvolvidos neste livro, ao contrário do que se verifica nas suas obras anteriores, a cuja precisão estamos habituados, sendo algumas delas indispensáveis a qualquer islamólogo. Mas regista-se a intenção, que se saúda.