sexta-feira, 18 de julho de 2014

HOMOSSEXUALIDADE EPISTOLAR




O historiador Philippe Artières publicou, há tempos, uma obra curiosa, Lettres d'un inverti allemand au Docteur Lacassagne (1903-1908), onde reúne as cartas de Georges Apitzsch ao célebre médico francês.

Segundo Artières, que prefacia o livro, existe uma gritante ausência na história do século XIX, a dos "invertidos", como então se designavam os homossexuais masculinos. Escreve o autor que esses ausentes - que "preferiam os operários jovens às raparigas que frequentavam os bailes públicos" - deixaram todavia numerosos traços ao contrário do que muitas vezes se diz: em pequenos anúncios, em cartas, em diários, ou mesmo numa ou noutra autobiografia. E ainda nos arquivos da justiça relativos à chantagem, à repressão, aos atentados aos costumes, à prostituição.

«Si les invertis sont absents de l'histoire, comme les femmes le furent longtemps, cela tient à notre incapacité à penser les homosexuels comme des acteurs comme les autres, c'est-à-dire comme présences. Ce refus se manifeste par le rejet d'une histoire du banal: il n'y aurait en somme d'homosexualité historicisable que dans ce qui rompt les cours ordinaires des jours. On associe ainsi ces pratiques à des moments particuliers, la guerre, à des  lieux spécifiques, la prison, la caserne, ou à des figures singulières, l'artiste et l'écrivain. En somme, on les construit comme relevant de l'extraordinaire. Or, il est une histoire ordinaire de l'homosexualité, une histoire qui croise celle des sociétés européennes, une histoire qui est aussi celle de la médecine et des corps, celle de la police, celle de nos institutions.» (p. 9-10)

Durante o século XIX os homossexuais viajaram pela Europa (Itália, Alemanha, Londres, Paris) atraídos por certos locais (points de recherche) onde poderiam encontrar espíritos afins, onde poderiam conviver com jovens atraentes, mas também onde poderiam consultar médicos famosos a respeito da sua própria orientação sexual. Assim os vemos a visitar Magnus Hirschfeld ou Albert Moll, em Berlim, Alexandre Lacassagne, em Lyon, Friedrich Salomon Krauss, em Viena ou Paolo Mantegazza, em Florença.

O caso de Georges Apitzsch é paradigmático. Estudante, pertencendo à burguesia industrial alemã protestante, com um irmão mais velho igualmente homossexual, distancia-se do meio familiar e instala-se em Dieulefit, a 170 km de Lyon. A sua correspondência com o doutor Lacassagne (1854-1924), professor da Faculdade de Medicina de Lyon, não só aborda o seu caso particular como constitui uma crónica científica e literária da inversão sexual na Europa. Constatando que o professor está, aos seus olhos, insuficientemente informado dos trabalhos contemporâneos, nomeadamente alemães, transmite-lhe as publicações existentes, com os seus próprios comentários. Refira-se que Lacassagne, célebre pelas suas perícias criminais, nomeadamente no caso do assassinato do presidente da República Sadi Carnot em 1894, tornou-se, em França,  um dos maiores especialistas em matéria de medicina legal, devendo-se-lhe, também, o artigo "Pederastia" (à época o termo era utilizado em sentido lato e designava todas as relações homossexuais masculinas independentemente da idade dos participantes) para o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales, de A. Dechambre (1886), que o livro em apreço inclui como anexo. Foi nos arquivos de Alexandre Lacassagne, depositados na Bibliothèque de Lyon-La Part-Dieu, que Artières exumou as cartas de Apitzsch. A forte medicalização da sexualidade, de que o século XIX foi teatro, está amplamente analisada por Michel Foucault nas suas lições (Les Anormaux) no Collège de France, em 1974-1975.

 Passando às 31 cartas de Apitzsch a Lacassagne (não se conhecem as missivas deste ultimo para o seu interlocutor), constituem elas um manancial inexaurível de informações, não apenas sobre os "padecimentos" específicos do estudante alemão (a inversão, a depressão, a necessidade de circuncisão, uma fístula anal, inclusive uma infestação de piolhos púbicos), mas sobre as suas aventuras sexuais, os seus gostos, a descrição do panorama homossexual internacional da época, apoiada em viagens, livros, etc,

Algumas, só algumas, citações:

«La sexulité domine comme toujours ma vie, toutes mes pensées, tout, et je peux à peine me séparer de ces apparitions. Même dans les prières et très souvent au temple ces idées me poursuivent et cette obsession d'être contraint comme un esclave à penser à des soldats et à des bottes me rend fort malheureux. L'autre jour, j'ai vu un hussard qui était très beau et fort joli et le désir de le posséder, même seulement de pouvoir le caresser, l'embrasser, m'a beaucoup excité, mais, grâce au ciel, je n'ai guère pu le fixer, l'occasion n'étant pas favorable et il était trop jeune pour le salir avec de telles spéculations.» (p. 27)

(Hussard, em francês, provém do original sérvio gussar e refere-se à classe de cavalaria ligeira de origem servo-croata)

«J'ai senti une grande  prédilection pour des ordonnances. C'étaient ordinairement des gaillards robustes et forts (campagnards) à l'âge de 21-24 ans avec légère moustache, mais jamais dans ma vie j'ai senti un amour pour des mâles avec des barbes et mon amour est resté le même, [il] s'est concentré sur des jeunes gens du peuple (soldats surtout18-25 ou 30 s'ils sont restés jeunes dans le dernier âge). À cet égard voir la fin de ce[tte] mémoire. Ces ordonnances ont eu un[e] uniforme bleu[e] bien collant[e] de manière qu'ont pouvait toujours voir des formes bien viriles. Comme j'ai dit: c'était des campagnards avec des couleurs de visages bien saines et fraîches. Ils n'étaient pas esthétiquement beaux, quelquefois le contraire. Mais ils avaient quelque chose qui m'a aiguillonné. Quand j'ai vu ces ordonnances, je les ai suivis longtemps avec mes regards et avais le plus grand désir d'être avec eux, surtout quand ils étaient en des cullotes à cuir et de grandes bottes (mais jamais une personne d'une position socialement élevée avec des bottes m'a excité). J'ai souvent soupiré et désiré que mon père fusse oficier.
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Aussi des ouvriers et des gens du peuple, s'ils sont jeunes et forts, m'attirent, des matelots, des gendarmes et des gardiens de la paix (polices). Depuis que je suis en France, m'ont attiré le rouge de l'uniforme et surtout les cavaliers avec leurs grosses culottes et bottes. C'est une vraie manie; je peux suivre les derniers avec une persévérance insensée.» (p. 33-34)

«Aussi j'ai fixé trop de garçons télégraphistes qui étaient jeunes et jolis - ils sont en uniforme en Allemagne. Ces garçons toujours en des relations avec le personel des tramways électriques m'ont rapidement rendu populaire.» (p. 38)

(Em Portugal, eram famosos os boletineiros da Marconi, jovens que se deslocavam de bicicleta para entregar os telegramas. Houve tempo em que muitos homossexuais se enviavam mutuamente telegramas e quando o boletineiro surgia com a mensagem era logo convidado a entrar em casa)

«Pendant mon absence ma tante avait envoyé à ce petit homme duquel je vous parlais un panier de vivres. Donc sa femme m'écrit en me remerciant de tout son coeur qu'elle attend sa troisième enfant ce que l'homme n'avait pas osé me dire. Vous pouvez me figurer ma grande surprise, puiqu'il a fait justement cet enfant pendant nos premiers points d'attouchement au printemps passé.» (p. 52)

«Mon frère a de nombreuses conquêtes à faire. On lui dit qu'il soit très beau. Ce sera probablement le goût nommé "depravé" de mes confrères. Ordinairement il préfère les hommes de sa classe sociale entre 30-40 ans, mais il ne dédaigne pas un soldat. Il a beaucoup de liaisons et il lui fait un grand plaisir de coucher avec des hommes qu'il ne connaît que des heures.» (p. 55)

«Quelle belle pensée, quelle bonne idée que d'être allé en Italie, pays où l'on peut vivre sans gêne et où ne doit pas craindre l'indiscrétion d'autrui. Je puis donc vous dire que mon état s'est sensiblement amélioré. J'ai une liaison avec un jeune sous-officier de l'infanterie. C'est moins les rapports sexuels avec lui qui me rendent content, c'est surtout le sentiment de faire matériellement du bien au jeune homme qui de bonne famille était sans ressources, quand je l'ai rencontré un jour, et qui vivait chichement de ses qq. sous qui lui sert l'État. Je me suis proposé de lui trouver plus tard une place en France por qu'il puisse apprendre la langue. Il était garçon dans divers restaurants de Rome.» (p.67)

Estes breves excertos do livro dão uma ideia das preocupações de Apitzsch, da sua obsessão por fardas (aliás, um lugar-comum nas preferências dos homossexuais, embora não se saiba se hoje as mulheres-soldados exercem também idêntico fascínio sobre as lésbicas), da sua vontade de informar o doutor Lacassagne do estado da arte em vários países. Embora não se conheçam as respostas do médico, sabe-se que ele utilizava as informações dos "doentes" para o seu próprio estudo e para as suas publicações,

Muito mais haveria a dizer sobre esta obra, cuja leitura se recomenda aos interessados.


2 comentários:

Zephyrus disse...

Em Portugal os «brandos costumes» e a figura da mãe castradora (Jorge de Sena dedica pelo menos dois poemas às mães e mulheres de Portugal) inibiram muitos homens portugueses e continuam a inibir, contudo existiu e existe uma vida sexual subterrânea no nosso país que ainda está por descrever, estudar e publicar. Recordo, por exemplo, o que vi e me surpreendeu -há 15 anos- numa estrada a Sul de Coimbra: uma procissão de carros com homens em quilómetros sem iluminação pública, numa madrugada de Sábado, com um código especial dado por travagens e sinais de luzes. O meu guia, frequentador do sítio, conduziu-me àquela experiência «sociológica»: o local era frequentado por padres de passagem por Fátima, professores da UC, trolhas de Viseu, homens de todas as classes sociais. A título de curiosidade, há uns anos já havia mais de 100 mil perfis portugueses em sites de encontros para homens que procuram homens! É lamentável que não haja, por enquanto, obras desta natureza no nossa país. Há toda uma série de relatos por recolher, estudar e publicar, de vivências sexuais na guerra colonial, quartéis, tropa, seminários ou residências universitárias masculinas.

ZÉ DOS ANZÓIS disse...

Desde então pouco mudou nos costumes, porque há coisas imutáveis na natureza humana. Por exemplo, a atracção das fardas é uma constante desde tempos imemoriais.

Felicita-se o autor do blog por reflexões tão apropriadas. É um facto também que os costumes são hoje, que vivemos em liberdade, dizem, muito mais controlados que no século passado, apesar de se apregoar o contrário. Só na aparência as coisas melhoraram.