Carlos Quinto, pelo Tiziano (Museu do Prado) |
É pacífico afirmar-se que Verdi é um dos maiores compositores operáticos, senão mesmo o maior, de todos os tempos. Já é mais difícil hierarquizar as suas óperas, sendo que tal classificação é sempre um exercício arriscado e, afinal, irrelevante, uma vez que a beleza das criações é, por natureza, incomparável.
Uns escolherão Otello ou Macbeth (para ficarmos em Shakespeare), outros optarão por Aida, ou Un ballo in maschera ou Simon Boccanegra. Para mim, Don Carlo é, por excelência, a criação superior de Verdi.
Tem sido escrito, muitas vezes, que Don Carlo, que se inspira no poema dramático Don Karlos, Infant von Spanien, de Schiller (com libretto de Joseph Méry e Camille du Locle, traduzido para a versão italiana por Achille de Lauzières, Angelo Zanardini e Piero Faggioni), deveria chamar-se "Filippo", tal a importância de Filipe II no poema e na ópera. Pessoalmente, entendo que a denominação mais adequada seria "Carlo Quinto", já que é à sombra do sommo imperatore, que o drama se desenrola.
A mais recente criação operática de Don Carlo teve lugar em 13 de Agosto do ano passado, durante o Festival de Salzburg, tendo o vídeo desta notável realização sido agora editado em DVD, para grande satisfação dos melómanos.
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A produção de Salzburg foi servida por um extraordinário naipe de cantores, incluindo Jonas Kaufmann (Don Carlo), Anja Harteros (Elisabetta de Valois), Thomas Hampson (Rodrigo, Marchese di Posa), Matti Salminen (Filippo II), Ekaterina Semenchuk (Principessa Eboli) e Eric Halfvarson (Grande Inquisitore). Uma palavra para a participação especial de Robert Lloyd, já septuagenário, no pequeno papel do espectro de Carlos Quinto, e que foi em tempos um notável intérprete de Filipe II, nesta mesma ópera.
O maestro Antonio Pappano dirigiu a Orquestra Filarmónica de Viena e a encenação esteve a cargo de Peter Stein, que assinalou devidamente a presença tutelar de Carlos Quinto ao longo da ópera, apresentada na sua versão integral (4 horas). Também teve Stein o mérito de evidenciar a amizade amorosa existente entre o infante Dom Carlos e o marquês de Posa (um desempenho brilhante de Jonas Kaufmann e Thomas Hampson), nem sempre convenientemente realçada em outras realizações da ópera.
Sabemos todos que a versão dramática de Schiller não respeita a verdade histórica, já que o poeta molda os acontecimentos às suas conveniências românticas. Também o libretto utilizado por Verdi não é fiel ao poema de Schiller, ambos sacrificando a veracidade dos factos para satisfação de leitores e ouvintes, ao gosto das respectivas épocas.
A paixão de Dom Carlos pela madrasta (Elisabeth de Valois) é uma fantasia de Schiller retomada por Verdi, já que o infante era homossexual (cf. Jan Bremmer, Moments in the History of Sexuality, Utrecht, 1989). É por isso que nas encenações modernas da ópera se salienta a sua ligação ao marquês de Posa, que o texto do libretto permite realçar.
As convicções "liberais" de Dom Carlos e o seu empenho na luta dos patriotas flamengos são também uma invenção literária, uma vez que o infante, fruto de uma muito próxima consanguinidade, não era um cérebro político, e, para mais, ficou muito afectado por uma queda que deu aos 17 anos. É certo que odiava Filipe II, que, aos 23 anos, o encerrou numa masmorra onde morreu seis meses depois, devido a doença ou mandado assassinar pelo pai, segundo alguns depoimentos.
Armas de Carlos Quinto |
Tive ocasião de me referir aqui e aqui à pessoa do imperador e à ópera de Verdi. Nunca é demais evocar a poderosa figura de Carlos Quinto e, nesse aspecto, não só é claro o texto de Schiller como a música de Verdi suficientemente majestática. Quando as encenações servem esse desígnio, como é o caso desta produção de Salzburg, e os cantores excelentes, então o espectáculo é perfeito.
Para os interessados, indica-se o endereço (http://www.gutenberg.org/files/6789/6789-h/6789-h.htm#link2H_4_0001) onde podem encontrar a versão inglesa do poema de Schiller.
Um dos temas relevantes da ópera é o das relações entre a Igreja e o Estado, exemplificado na cena entre Filipe II e o Grande Inquisidor, que termina com esta frase do rei: «Dunque il trono piegar dovrà sempre all'altare!». A aparição do espectro de Carlos Quinto no final da ópera encerra a moralidade da estória: »Il duolo della terra/nel chiostro ancor ci segue;/solo del cor la guerra/in ciel si calmerà.»
Mosteiro de Yuste |
Carlos Quinto, em 1556, abdicou da coroa do reino de Espanha a favor de seu filho Filipe II e da coroa do Santo Império Romano Germânico a favor de seu irmão Fernando I, que seria eleito imperador em Frankfurt, conforme as regras, em 1558. Depois da abdicação, retirou-se para o mosteiro de Yuste (San Giusto) onde morreu em 1558, poucos meses após a confirmação de seu irmão no trono imperial. Foi enterrado no mosteiro, tendo os restos mortais sido trasladados mais tarde para o mosteiro de San Lorenzo de el Escorial. É precisamente no mosteiro de Yuste que decorre o V (e último) acto da ópera Don Carlo.
Como curiosidade, note-se que Carlos Quinto (de Habsburg) é o único monarca a ser designado não pelo número romano (V) mas por extenso (Quinto), o que simboliza a grandeza da sua majestade.
2 comentários:
«A paixão de Dom Carlos pela madrasta (Elisabeth de Valois) é uma fantasia de Schiller retomada por Verdi, já que o infante era homossexual (cf. Jan Bremmer, Moments in the History of Sexuality, Utrecht, 1989). É por isso que nas encenações modernas da ópera se salienta a sua ligação ao marquês de Posa, que o texto do libretto permite realçar.»
Muita informação sobre a vida privada da aristocracia europeia continua velada, apesar de se viverem tempos de maior liberdade nos costumes.
Pelo que me têm dito a Academia portuguesa continua a esconder as inclinações de diversos reis ou escritores portugueses. Penso, por exemplo, no caso da obra de Fernando Pessoa. É estudado nas nossas escolas secundárias mas o tema homossexualidade na obra de Álvaro de Campos é omitido.
Só recentemente é que surgiu uma obra sobre a vida íntima dos nossos reis. Ainda não li e creio que foi escrita por um espanhol.
O "Don Carlo" é realmente uma das melhores óperas de Verdi. Como acontece na maioria das óperas a verdade histórica é sacrificada ao presumível êxito. E também aos costumes da época. Hoje, por exemplo, seria perfeitamente admissível admitir a ligação entre Don Carlo e o marquês de Posa, mas haveria que inventar um outro conflito para o enredo, que Schiller dificilmente encararia.
Mesmo assim, ficou-nos uma obra imortal, apenas desfasada nas encenações modernas, em que se assiste, ao mesmo tempo, à paixão avassaladora do infante pela madrasta e ao seu amor por Rodrigo. Não dá para entender, pelo menos para os não iniciados.
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