Pela sua importância, transcrevo abaixo o artigo que o Embaixador Francisco Henriques da Silva teve a gentileza de me enviar:
Da construção europeia, do
Euro, da Euro-Alemanha e de outras
histórias e historietas explicadas ao Povo e contadas às criancinhas
Relativamente ao título acima
transcrito, não resisto em reproduzir, em tradução livre e adaptada, um e-mail
que, um pouco ao sabor da pena, sem grandes preocupações de erudição nem de
organização de ideias, escrevi a um amigo meu, francês, fidelíssimo crente no
mito europeu. Ei-lo:
“Meu caro
Li com
atenção os documentos que me enviaste.
Sabes,
servi durante dois anos e meio, como membro do Gabinete do Comissário europeu -
de nomeação portuguesa, ou seja do Governo de então -, Prof. João de Deus Pinheiro, em Bruxelas, de
1993 a 1995. Não fui, pois, passageiro, piloto
ou comissário de bordo dos aviões, estive na própria torre de controlo do
aeroporto. Por conseguinte, posso assegurar-te que, modéstia à parte, julgo
conhecer minimamente como funciona a “máquina europeia”, as pessoas que ali
trabalham ou que por lá andam e que dão a volta à manivela.
Jacques
Delors era, à época, o grande patrão, tinha um projecto e, se bem me lembro,
tinha a ilusão de que a Europa podia ver a luz do dia, em grande estilo. A fé
move montanhas e a Bélgica é lisa como uma panqueca. Nesses tempos que já lá
vão, eu era um crente entre os crentes, a bem dizer quase um fundamentalista
pró-europeu, passe a expressão. Ah! A Europa! A magnífica e grandiloquente
construção do nosso futuro comum! A criação de
um mundo exemplar! Blá-blá-blá, sempre blá e ainda blá...
Tudo
isso, entretanto, mudou e tal como os adolescentes, que aos 14 ou 15 anos
descobrem um belo dia que têm sérias dúvidas sobre a religião, que deixam de ir
à missa e que já não sentem necessidade de rezar, perdi também a minha fé na
construção europeia. Tornei-me agnóstico e, à medida que o tempo ia passando,
pior ainda: tinha-me tornado num agnóstico militante e revoltado. Por outras
palavras, a Europa era um mito que se auto-alimentava e que com o qual tínhamos
de viver. Tratava-se do novo ópio do Povo do século XXI! Todavia, para os
descrentes como eu, no fundo, tínhamos de engolir a pílula – éramos e somos
apenas umas vozes isoladas que clamam no deserto - , sem embargo não podemos
engolir tudo e há coisas que muito claramente devemos recusar.
Vejamos
o que se passa. A Europa perde-se e perdeu-se em debates intermináveis, alguns serão bizantinos outros
não tanto: federalismo vs. soberania dos Estados-Nações, Europa prato do dia ou
“à la carte”, alargamento ou aprofundamento, união mais estreita ou mais
flexível, implementação ou não do conceito de subsidiariedade, etc, etc, etc.
Poderia perder horas a equacionar todos este problemas, mas o melhor é
passarmos adiante porque estas questões são meramente retóricas e as consequentes respostas não nos conduzem
a parte alguma. Concentremo-nos, antes, nos problemas mais actuais e mais
prementes. Alguns poderão directa ou indirectamente responder a algumas dessas questões
de fundo.
O euro
constituiu uma armadilha, criado que foi
à pressa por pressões de François Mitterrand, assustado com a reunificação
alemã e com os riscos dum potencial – e imaginável - domínio alemão da Europa (os fantasmas da
guerra franco-prussiana e dos dois grandes conflitos mundiais do século passado
emergiram, como emergem sempre, nas mentes gauleses). O PR francês dá um salto
na cadeira após ter escutado o discurso do chanceler alemão Helmut Kohl no
Bundestag: a Alemanha unia-se de Leste a Oeste. As luzes no Eliseu estiveram
acesas toda a noite, a insónia era infindável. Enervado Mitterrand decide então
avançar com a criação imediata do Euro, custasse o que custasse, como fórmula
para amarrar a agora Grande Alemanha ao projecto europeu. Todavia, impôs duas
condições a Bonn: a) a Alemanha podia reunificar-se (era o discurso politicamente
correcto, não se atrevia a dizer outra coisa) desde que se comprometesse
publicamente com a criação da moeda comum; b) os alemães deviam, igualmente,
aceitar critérios financeiros estritos para aquela criação. O erro de
Mitterrand foi colossal. Para os alemães, porém, foi a festa au grand complet : “Este imbecil
oferece-nos a reunificação de mão beijada e ainda por cima o euro. Os critérios
seremos nós a decidi-los”. E Kohl & Cia. disseram-no de uma forma bem clara
e explícita: “Sim, é evidente, mas os critérios serão os do marco alemão. Ponto
final”. Eis-nos, pois, chegados ao Tratado de
Maastricht e aos famosos critérios de convergência. Iríamos adoptar colectivamente
o marco com outro nome. Mas será que ninguém viu? Toda a gente subscreveu o
acordo sem pensar nas consequências?
Quem foi o responsável? Bom, Mitterrand à cabeça, sem qualquer dúvida, mas
todos os demais foram cúmplices. A Alemanha ganhou em todos os tabuleiros.
O euro
foi pois criado à imagem e semelhança do
marco. Não houve nem uma regulamentação estrita e uniforme do sistema bancário,
nem harmonização fiscal, nem convergência das políticas económicas. Tudo isto
implicaria uma maior integração e consequentes perdas de soberania, mas não se
podia adoptar uma moeda comum sem pensar nestas questões que são
verdadeiramente cruciais. Os EUA também dispõem de uma moeda comum, mas estes
problemas estão, como se sabe, resolvidos à partida, sem prejuízo das
diferenças – que são muitas – entre, por exemplo, o Alabama e a Califórnia.
O euro é pois uma criação ex nihilo, baseada em falsas premissas,
sem quaisquer bases sólidas, apenas para satisfação das pretensões alemãs. Esta é a verdade dos factos. Porém, tudo
parecia navegar em águas tranquilíssimas, num mundo panglossiano: “Tout va bien
dans le meilleur des mondes”. Melhor ainda: nos pequenos países de economia
débil da periferia, acabavam as taxas de juro elevadas, o dinheiro era
abundante, fácil e barato. Ninguém temia o que quer que fosse. Vivia-se na
euforia. Podia-se, finalmente, construir as auto-estradas, os hospitais, as
escolas, os aeroportos; o povão iria viver melhor, tinha-se posto termo à
miséria e aos anos das “vacas magras”. Era o tempo de todos os sonhos e de
todas as loucuras, que, infelizmente, não iria durar muito.
Com efeito, a crise já lá estava.
Começa em 2007 e em Setembro de 2008 dá-se o colapso – é a famosa crise do sub-prime, que está na origem da
subsequente recessão nos EUA e na Europa, ou seja, uma crise do sistema
bancário à escala mundial, com múltiplas causas, mas com o eixo principal
centrado no mercado hipotecário.
Na Europa, para além de todos os
sinais precursores negativos prosseguia-se tolamente com a mania das grandezas.
Alguns governos, aparentemente aconselhados pela própria Comissão Europeia (!),
gastaram ainda mais para “fazerem face à crise” que era, dizia-se, passageira e
a Alemanha lá estaria como anjo da guarda de toda a gente, a proteger-nos dos
males e pestilência que vinham de fora. O euro era uma moeda forte. As pessoas
continuavam a gastar. Lentamente, porém, aqui e acolá, as apreensões começavam
a surgir, mas “era só fumaça”, ninguém via as labaredas do incêndio já declarado,
que se avizinhava a passos largos.
Crise? Meu amigo, a crise é
essencialmente bancária e não outra coisa. O sistema bancário é a causa, o
endividamento público e privado a consequência. A quem pedimos nós, Estado ou
particulares, dinheiro? À banca, pois claro. Quem é que o emprestou de uma
forma irresponsável, mafiosa, criminosa, através de um sistema opaco e
corrupto? A banca. É, porém, óbvio que os governos, por ignorância, irresponsabilidade
e ineficácia, têm também a sua quota-parte de culpas no assunto, mas a responsabilidade
principal reside no sistema bancário, insuficientemente regulamentado e a
funcionar sem qualquer controlo ou supervisão, dignos de nota.
Concretamente, no caso português,
o euro acabou com a nossa indústria, pôs um ponto final no que restava da nossa
agricultura, criou empregos fictícios no sector dos serviços e, last but not least, impediu o livre
curso das nossas exportações. Devemos continuar a reiterar os nossos erros?
Cair de vez no precipício? É tempo de
dizer. “Alto e pára o baile!”
Mais. Adoptámos o euro, sem
qualquer consulta popular. Para quem se vangloria de uma democracia, de pura
ficção, diga-se de passagem, o que se passou foi, pura e simplesmente,
revoltante.
Eis-nos chegados à pergunta que
se impõe: pode-se ou não bater com a porta? Sim, mas tal implicará sacrifícios
de monta. Já sofremos bastante, é verdade, mas podemos sofrer ainda um pouco
mais para sermos recompensados a longo prazo. Trata-se de testar a nossa
capacidade de resiliência. Se batermos com a porta, o barco vai ao fundo, ou
seja a “Eurolândia” desaparecerá. A minha resposta é simples: que se afunde.
Francamente – e não quero cair na demagogia barata – ao ponto a que chegámos e
com a idade que tenho, é-me indiferente. Com uma nova moeda – escudo, cruzado,
maravedi ou pataca – teríamos de imediato uma desvalorização de 30 ou 40%, quem
sabe se mais. Mas se resistimos passiva e heroicamente até agora, não podemos
aguentar mais um embate? Teremos ou não capacidade para sofrer ainda mais? Na
certeza, porém, de que recuperaremos a nossa soberania, seremos, apesar das
limitações, de algum modo senhores do nosso destino e não os servos da gleba
dos outros. Podemos fechar as portas por
um período relativamente curto e,
entretanto, mandar os banqueiros e os políticos desonestos para a cadeia,
depois...depois, se verá! Isto não é populismo. É possível.
Duas pequenas notas finais:
a)
Portugal não viveu acima dos seus meios e das
suas possibilidades. Foi a banca nacional e internacional que nos disse de forma enfática: “Façam os
vossos jogos! Há dinheiro para todos!”. Meu caro amigo, sabemos bem que assim
foi e podia apresentar-te n exemplos
do que afirmo.
b)
A nossa adesão à UE (na época CEE) foi
apresentada como a “terra prometida, onde corre o leite e o mel”. Vamos de um
dia para o outro transformarmo-nos em suecos ou em alemães, apesar do nosso cabelo
escuro e da nossa tez morena. Isto foi vendido ao pagode, desta maneira, sem
jamais, em tempo algum, se ter pronunciado em referendo sobre o assunto. Os
políticos-politiqueiros da nossa praça assim nos venderam o peixe.
Podia
continuar, mas fico-me por aqui. Falaremos longamente sobre o assunto, mas esta
já vai longa, demasiado longa. É um dilatado grito da alma e interpreta-o
assim.
Abraço
amigo”