sábado, 31 de agosto de 2024

AS CORTES DE COIMBRA DE 1385



A propósito do recente aniversário da batalha de Aljubarrota, reli Aljubarrota: 600 Anos, um livro que reúne as 22 conferências proferidas na Sociedade Histórica da Independência de Portugal aquando do 600º aniversário da famosa batalha.

Trata-se de intervenções notáveis sobre a Batalha e sobre as Cortes de Coimbra, que estiveram a cargo de notáveis historiadores civis e militares como, entre outros, Joaquim Veríssimo Serrão, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Carlos Gomes Bessa, Henrique Barrilaro Ruas, António Almeida Brandão, Alberto Vieira de Ascensão, Pedro Soares Martinez, Altino de Magalhães, Alberto Franco Nogueira, Torquato de Sousa Soares, José Carlos Amado, Salvador Dias Arnaut, Francisco da Gama Caeiro ou Nuno Espinosa Gomes da Silva.

As Cortes de Coimbra de 1385, cuja principal, e quase única, fonte de informação é a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, têm feito correr abundante tinta, tanto mais que o cronista, escrevendo mais de 50 anos depois do acontecimento, não foi testemunha presencial e terá "reconstituído" o ocorrido a partir de um documento realmente existente, de afirmações alheias que não dos protagonistas, da sua imaginação e até de alguma conveniência política circunstancial. E, por isso, a descrição da Crónica é por vezes contraditória, como é salientado por vários dos participantes no Ciclo de Conferências.

Aproveitei para reler também As Cortes de 1385 (1951), de Marcello Caetano, estudo incluído em A Crise Nacional de 1383-1385 (1985). Nessa obra, o Prof. Marcello Caetano dá-nos uma visão de conjunto, sucinta mas suficientemente abrangente desse acontecimento, todavia indispensável para a compreensão da forma como se resolveu a primeira crise dinástica nacional. Assim, ele é largamente citado pelos conferencistas, mesmo quando se trata de corrigir um pequeno lapso, já que Marcello Caetano escreve ter estado presente nas Cortes o bispo de Cidade Rodrigo (p. 11), quando se tratava do bispo de Coimbra (de nome Rodrigo), como notou na sua intervenção o Dr. Alberto Vieira de Ascensão.

Importa notar alguns factos:

1) As Cortes reuniram-se em Coimbra em Março e Abril de 1385;

2) Foi Nuno Álvares Pereira quem aconselhou o Mestre de Aviz a convocar os fidalgos e os homens-bons da cidade de Lisboa para que lhe prestassem homenagem. O primeiro episódio teve lugar em 2 de Outubro de 1384, no Mosteiro de São Domingos, onde o Mestre foi proclamado Regedor e Defensor do Reino. Mas como havia necessidade de obter recursos financeiros para a prossecução da guerra e definir o problema da chefia, assuntos da competência das Cortes, foram estas convocadas para Coimbra. Não é claro se a questão da chefia fazia inicialmente parte do objecto das Cortes, ou tão só o financiamento da guerra. Mas as coisas foram conduzidas pelos partidários do Mestre para que ela fosse incluída na "ordem de trabalhos";

3) Estiveram presentes, como se sabe pelo "Auto da Eleição", e segundo a tradição, representantes dos três estados. O arcebispo de Braga e a maioria dos bispos portugueses, pelo clero, 72 fidalgos, pela nobreza, e procuradores de 31 cidades e vilas, pelo povo;

4) As Cortes tiveram lugar nos Paços d'El-Rei e iniciaram-se a seguir à chegada a Coimbra do Mestre d'Aviz, que ocorreu em 3 de Março de 1385, logo, alguns dias depois;

5) Houve uma Inquirição sobre a legitimidade dos filhos de D. Inês de Castro, que decorreu de 30 de Março até 3 de Abril. O Auto de Eleição do Mestre de Aviz como rei tem a data de 6 de Abril. A Carta de Confirmação dos privilégios da cidade de Lisboa bem como os diplomas que despacham os capítulos das Cortes são datados de 10 de Abril;

6) Deve ter havido reuniões plenárias e reuniões separadas, sendo plenárias, pelo menos, a de abertura em que o Dr. João da Regras fez o discurso da proporção bem como a que deliberou a eleição de D. João I. Em reuniões separadas tratou-se do financiamento da guerra e dos agravamentos dos povos, assuntos que não estiveram condicionados pela solução dinástica.

Aquando da reunião das Cortes o país estava dividido em três partidos relativamente à sucessão de D. Fernando I. O "partido legitimista" considerava D. Beatriz, filha de D. Fernando I e de D. Leonor Teles, e mulher de D. João I, rei de Castela, como a única herdeira legítima, nos termos da Escritura de Salvaterra de Magos (2 de Abril de 1383), que assim estabelecia. O "partido legitimista-nacionalista" receava que a sucessão com D. Beatriz pusesse em causa a independência nacional, submetendo-a a Castela. Por isso, defendia que a herança cabia aos filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, D. João de Castro ou, no impedimento deste, na altura preso em Castela, seu irmão D. Diogo de Castro. O "partido nacionalista" sustentava que o único herdeiro capaz de assegurar os interesses de Portugal era D. João, Mestre de Aviz, filho de D. Pedro I e de Teresa Lourenço, apesar de bastardo e clérigo, situação que a Santa Sé resolveria.

É claro que o "partido legitimista", solidário com Castela, não esteve representado nas Cortes de Coimbra. O "partido legitimista-nacionalista" era chefiado por Vasco Martins da Cunha e por seus filhos. Aceitava a regência do Mestre de Aviz, enquanto D. João de Castro estivesse prisioneiro em Castela. A Chronica do Condestabre, obra anónima, fornece pormenores interessantes a esse respeito. O "partido nacionalista" era constituído pela "arraia-miúda" e alguns homens-bons, à frente dos quais estava D. Nuno Álvares Pereira.

A notável e hábil argumentação do Dr. João das Regras, sujeita a algumas variações na Crónica de Fernão Lopes, pode resumir-se no seguinte:

a) D. Beatriz, para além do seu casamento com o rei de Castela, era filha ilegítima de D. Fernando. Quando este casou com D. Leonor Teles ela estava casada com João Lourenço da Cunha. Por outro lado, D. Beatriz era cismática, pois Castela reconhecia não o Papa de Roma mas o de Avinhão;

b) Os filhos de D. Inês de Castro eram ilegítimos, pois D. Pedro estava casado com D. Branca de Castela à data do casamento que dizia ter celebrado com aquela [o que é falso, foi um expediente do Dr. João das Regras, pois o casamento com D. Branca nunca ocorreu. E também não há provas que D. Pedro tenha casado com D. Inês, já que tal não foi reconhecido pelo Papa (Bula Nuper per certos ambaxiatores);

c) O próprio rei D. Fernando, filho do casamento de D. Pedro com D. Constança tinha também sido um rei ilegítimo, pois D. Pedro se encontrava casado com D. Branca [o que é falso, como se escreveu acima];

d) O Mestre de Aviz era igualmente um filho ilegítimo, como se sabia.

Tudo isto para lá de problemas de parentesco que teriam exigido dispensas papais, mas que não cabe aqui detalhar.

A conclusão pretendida por João das Regras era a de que o trono se encontrava vago e seria necessário eleger um rei, visto que todos os pretendentes eram ilegítimos. A sua argumentação, e também a persuasão militar do Condestável, levou os presentes, atendendo ao estado de necessidade do Reino e atendendo a estarem preenchidos os requisitos de elegibilidade do Mestre, a promoverem D. João à "alta dignidade e estado de rei". 

O Auto da Eleição é o documento fundamental desta fase do funcionamento das Cortes de 1385 e foi nele que Fernão Lopes se baseou para redigir, na sua Crónica, o que nelas se passou. Foi escrito em português e vertido em latim para ser enviado à Santa Sé, também com o fim de impetrar a ratificação da eleição, feita sem embargo de não ter havido prévia dispensa do defeito do nascimento e da condição clerical. Após duas embaixadas enviadas a Urbano VI, uma terceira embaixada enviada a Bonifácio IX obtém a satisfação do pretendido. O Soberano Pontífice emite a Bula Quia rationi congruit et convenit, de 29 de Janeiro de 1391, em que certifica que Urbano VI absolvera D. João I da excomunhão em que pudesse ter incorrido, dispensando-o do impedimento do nascimento para o exercício da função real e dos votos de castidade que como professo da Ordem de Cister o impediam de casar e ratificando desde logo o casamento com D. Filipa de Lencastre; e a Bula Divina disponente clementia, de 27 de Janeiro de 1391, concedendo a D. João I o desligamento dos votos de pobreza, obediência e castidade absolvendo-o do perjúrio que cometeu, legitima o seu nascimento e ratifica o seu casamento sem embargo de quaisquer impedimentos existentes.

A primeira bula destina-se a certificar urbi et orbi a regularização da situação do Mestre concedida por Urbano VI; a segunda bula, acto pessoal de Bonifácio IX, destina-se a tranquilizar a consciência de D. João I. Estas formalidades eram indispensáveis já que se vivia na Europa numa respublica christiana que subordinava os príncipes ao juízo supremo do Papa e a bênção deste vencia todos os escrúpulos. 

Na sua Monarquia Lusitana, Fr. Manuel dos Santos descreve com pormenor a cerimónia da coroação e aclamação pelas ruas da cidade, então Coimbra, mas realmente não houve coroação (nunca houve em toda a I Dinastia) e a cerimónia litúrgica terá sido apenas a missa de pontifical pelo bispo de Lamego com a assistência do novo rei no sólio. 

Como se disse acima, D. João I de Castela havia prendido D. João de Castro para que ele não fosse um estorvo às pretensões de sua mulher D. Beatriz. Mas dada a situação posterior, o rei de Castela libertou-o e nomeou-o regente de Portugal em nome dos reis castelhanos, por diploma datado de Burgos, de 24 de Março de 1386, conforme documento descoberto em Madrid pelo embaixador de Portugal (1945-1953) Dr. Carneiro Pacheco, mas o acto não deve ter chegado a ter efeito.

Deve ainda dizer-se que uma das principais razões que motivou a crise de 1383 foi a completa animosidade do povo de Lisboa em relação a D. Leonor Teles (que ficara como Regente, nos termos da Escritura de Salvaterra), já manifestada aquando do seu casamento com D. Fernando mas principalmente pelas suas ligações a Castela e pela sua relação adúltera com João Fernandes Andeiro, conde de Ourém. Entre os mais ardentes defensores da eliminação de Andeiro estava Álvaro Pais, figura notável de Lisboa, que na sua intervenção o Dr. José Carlos Amado classifica como membro da classe média, recusando a designação de burguês, já que não aceita a identificação da classe média com a burguesia «porque me parece indiscutível que, num esquema minimamente objectivo de composição social, os grandes ou médios mercadores e os mesteirais mais poderosos, não esgotam em Portugal a zona sociológica, nem as correspondentes formas de mentalidade e de comportamento, de uma camada intermédia da classe popular e da classe senhorial. Há a considerar ainda , pelo menos, os homens-bons dos concelhos, os letrados, os oficiais - usando esta palavra no sentido que lhe dá D. Duarte.» Foi Álvaro Pais que instigou o Mestre a matar o conde Andeiro, garantindo-lhe o apoio do povo. E foi ele que  correu pelas ruas de Lisboa aos gritos de "Matam o Mestre" para que o povo acorresse ao Paço da Rainha, onde D. João acabava de assassinar Andeiro e que teve de se mostrar de uma janela para provar que estava vivo e evitar maiores desacatos.

Pode dizer-se que Álvaro Pais foi a alma da revolução de 1383.

Este texto não passa de um singelo resumo dos acontecimentos de 1383-1385 e não tem outra pretensão de que recordar a primeira crise dinástica da Monarquia Portuguesa.

Concluo, citando Marcello Caetano: «Estamos, pois, perante um documento do mais vivo interesse histórico-jurídico [Auto da Eleição], porventura o de maior valor para a história do nosso direito público medieval, já que é apócrifa a acta das Cortes de Lamego. Assim resulta dos princípios nele exarados relativamente à sucessão hereditária da coroa, à vacância desta e devolução ao Reino do direito de eleição do rei, à aceitação do eleito e aos poderes da Sé Apostólica no reino de Portugal.» (p. 36)

VALETE, FRATRES


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

AS CONFISSÕES DE FELIX KRULL

 

Acabei de ler As Confissões de Felix Krull, Cavalheiro de Indústria, de Thomas Mann, que há cerca de quarenta anos repousava numa estante, devido a outras prioridades.

Trata-se de uma longa reflexão sobre a condição humana, diria mesmo de uma introspecção, efectuada através de Felix Krull, o protagonista, ressalvadas todas as diferenças, e são muitas, entre este e o autor do livro.

O escritor começou o romance nos anos 1910, continuou pouco a pouco a saga da personagem mas nunca concluiu a obra que foi parcialmente publicada em revistas e finalmente editada, incompleta, em 1954, uns meses antes de Thomas Mann morrer. Admite-se que os últimos capítulos tenham sido escritos no seu exílio em Zurique nos últimos tempos da sua vida.

Thomas Mann ocupa-se da decadência de uma família (tal como fizera a propósito dos Buddenbrooks) e da vida aventurosa de Felix, o filho da família, que se socorre da sua beleza para "triunfar" na vida. Na verdade, Felix é um indivíduo sem escrúpulos que não olha a meios para atingir os fins. Ao longo da volumosa obra, Thomas Mann ocupa largas páginas a descrever a beleza de Felix (de corpo que não de alma) desde a infância até aos seus dezoito anos, idade em que se situa a maior parte da acção. Uma descrição pormenorizada que faz lembrar a forma como caracterizou o Tadzio de A Morte em Veneza. Mas neste aspecto o escritor estava perfeitamente à vontade e com conhecimento de causa. 

Depois do suicídio do pai Krull (há sempre suicídios directos ou indirecto nas obras de Mann, talvez por causa das suas duas irmãs que se suicidaram), a família muda-se de Munique (a cidade de adopção do escritor e recorrente nos seus livros - recorde-se, por exemplo, o começo de A Morte em Veneza, quando é mencionada a residência em Munique de Gustav von Aschenbach, na Prinzregentenstrasse, perto da Prinzregentenplatz, local da célebre morada de Adolf Hitler na capital bávara), a família muda-se de Munique, dizia, para Frankfurt e daqui Felix viaja para Paris, para trabalhar num hotel de luxo, onde é sucessivamente ascensorista, criado de mesa e criado de quarto e onde a sua beleza seduz sucessivamente mulheres e homens que o desejam. O livro narra as aventuras de Felix com as mulheres mas omite as eventuais aventuras com homens, quedando-se nas propostas de sexo, já que Thomas Mann se resguarda de enveredar por caminhos menos ortodoxos para um escritor galardoado com o Prémio Nobel.

Todavia, no capítulo VI escreve: «A grosseria rebaixa até ao comum e é a cortesia que cria as distâncias. Recorria a ela, portanto, quando na minha juventude me sentia alvo de certos convites masculinos indesejáveis, o que não será muito para surpreender o leitor, sem dúvida informado sobre o mundo multiforme dos sentimentos. Essas propostas eram-me feitas com mais ou menos perífrases e diplomaticamente. E não há nelas nada de espantar, dada a fisionomia atraente que eu devia à natureza, ao encanto espalhado por toda a minha pessoa, impossível de dissimular, a despeito das minhas roupas miseráveis, do lenço em volta do pescoço, do fato remendado e das minhas meias cheias de buracos. Para esses solicitantes que, como bem pode supor-se, pertenciam às classes superiores, as minhas roupas ordinárias apimentavam ainda mais o seu desejo.» (p. 123)

É em Paris que Felix consuma mais uma vigarice, transmutando-se em marquês Luís de Venosta, a pedido do próprio titular, usurpando assim consentidamente aquela identidade. Uma espécie de Ripley avant la lettre. O marquês, cliente do hotel e obrigado pela família a fazer uma viagem pelo mundo, não quer deixar Paris por causa de uma amante e propõe a Felix que o substitua. É nessa qualidade que este viaja de Paris para Lisboa, com destino a Buenos Aires, mas o romance termina em Lisboa. 

A última parte do livro decorre, pois, em Lisboa, que Thomas Mann conhecia razoavelmente e da qual descreve no livro alguns dos sítios mais importantes, ainda que, naturalmente, estabeleça alguma confusão de nomes e locais. É na viagem de Felix para Lisboa que este conhece, no comboio, o professor Kuckuck, director do Museu de História Natural de Lisboa a quem visitará depois na capital portuguesa. Nos capítulos relativos a Lisboa é referido o rei D. Carlos I, a Torre de Belém, o Jardim Botânico, Sintra, a Praça do Comércio, o Rossio, a Avenida da Liberdade, etc. 

Thomas Mann é um apaixonado pelos pormenores. Eles são indispensáveis para caracterizar pessoas e descrever locais mas a profusão de detalhes e observações laterais é tão abundante nos seus livros que por vezes nos distrai do essencial, tornando as obras imensamente extensas. E sem necessidade. Basta atentar na dimensão dos Buddenbrooks, de A Montanha Mágica, da tetralogia José e os seus Irmãos ou do Doutor Fausto. Thomas Mann viveu para a escrita (e da escrita) é certo, foi plenamente um escritor full-time. Mas não é por ser um livro breve que A Morte em Veneza, novela com escassas cem páginas, deixou de ser uma obra notável, com o conteúdo bastante para permitir a Luchino Visconti a realização do célebre filme homónimo.

Nestas Confissões..., a inclusão sucessiva de histórias marginais ao enredo da obra afecta por vezes a estrutura do romance. A descrição dos espécimes do Museu de História Natural é um exemplo disso. Os leitores não estarão circunstancialmente interessados num curso de zoologia. Ocorre também pensar que Thomas Mann tenha querido "encher" voluntariamente os seus livros para os tornar mais extensos, sacrificando, se necessário, a unidade de acção em proveito da dimensão. Mas isso, eu ignoro.

Nada disto invalida, porém, a qualidade da prosa do escritor, considerado um dos mais famosos autores alemães contemporâneos.

A exemplo de outros, também este romance de Thomas Mann foi passado ao cinema, num folhetim televisivo em cinco episódios e com a duração aproximada de cinco horas (1982), dirigido por Bernhard Sinkel. O protagonista é interpretado pelo actor John Moulder-Brown, que fora o arquiduque Otto no filme Ludwig (1973), de Luchino Visconti. O papel do professor Kuckuck é desempenhado pelo famoso Fernando Rey. Nas cenas filmadas em Portugal encontram-se os nossos actores Varela Silva (director de hotel) e Armando Cortez (porteiro). O hotel de Paris onde, segundo o romance, Felix presta serviço é transferido no filme para um hotel em Monte-Carlo.


sábado, 3 de agosto de 2024

THOMAS MANN, O MÁGICO

Li por estes dias Le Magicien, de Colm Tóibín (2022), tradução francesa do original The Magician, publicado em 2021, romance biográfico sobre o escritor alemão Thomas Mann, Prémio Nobel da Literatura em 1929. Estava por mim agendado mas só agora o comprei.

Lera o ano passado, do mesmo autor e na tradução portuguesa, O Mestre, sobre a vida de Henry James, e comentei aqui .

É curioso que o escritor irlandês Colm Tóibín (n. 1955) tenha dedicado duas vastas obras a dois nomes cimeiros da literatura contemporânea, o anglo-americano Henry James e o alemão Thomas Mann, mas opção muito compreensível. Na verdade, Tóibín é um escritor homossexual assumido (como se diz agora), vivendo com o escritor e editor marroquino naturalizado americano Hedi El-Kholti. O facto de os dois gigantes da literatura Henry James e Thomas Mann serem ambos homossexuais (embora não assumidos) certamente lhe suscitou o interesse de se debruçar sobre as suas vidas.

Se o livro sobre Henry James é uma obra elogiável, o livro sobre Thomas Mann é notável. Apesar das suas 600 páginas apetece nunca interromper a leitura.

Parece oportuno recordar alguns elementos biográficos da família Mann, isto é, as dramatis personae.

O pai de Thomas Mann era o armador e senador de Lübeck Johann Henrich Mann e a mãe a brasileira Júlia da Silva Bruhns, uma família da classe média alta muito respeitada na região. Thomas Mann teve cinco irmãos: Heinrich (1871-1950), Julia (1877-1927), Carla (1881-1910) e Viktor (1890-1949).

Thomas Mann (1875-1955), embora homossexual, manteve sempre uma postura muita discreta, apresentando-se como um respeitável chefe de família. Casou-se em 1905 com Katia (Katharina) Pringsheim (1883-1980), filha do matemático judeu Alfred Pringsheim e de sua mulher Hedwig Pringsheim, família muito rica e culta, da melhor sociedade de Munique, que se havia convertido à religião luterana.

O casal Mann teve seis filhos: Erika (1905-1969), Klaus (1906-1949), Golo (1909-1994), Monika (1910-1992), Elisabeth (1918-2002) e Michael (1919-1977). Erika era abertamente bissexual, Klaus e Golo ambos homossexuais, embora o primeiro excêntrico e o segundo introvertido.

Katia Pringheim Mann tinha vários irmãos, entre os quais um gémeo, Klaus Pringsheim (1883-1972), um rapaz lindo, que viria a ser maestro e compositor e fora aluno de Gustav Mahler, um amigo da família. Thomas Mann conheceu Katia e Klaus ao mesmo tempo, e ficou obviamente impressionado com o rapaz (que não era homossexual), tendo decidido casar com a irmã, muito parecida com ele, naturalmente como gémeos que eram. Katia e Klaus nutriam uma paixão mútua, e embora não haja registo de que tenham cometido incesto, Klaus foi a única verdadeira paixão de Katia.

Erika Mann manteve inúmeras relações com ambos os sexos, tendo decidido propor casamento ao célebre escritor homossexual inglês Christopher Isherwood (1904-1986) para obter a nacionalidade britânica, devido às perseguições nazis. Isherwood, que vivia então com o também célebre poeta homossexual inglês W. H. Auden (1907-1973), declinou a pretensão mas remeteu Erika para o seu amante, que aceitou casar com ela, por altruísmo, em 1935. Apesar da sua nítida preferência lésbica, Erika chegou a manter relações sexuais com o célebre maestro judeu alemão Bruno Walter, na altura ainda casado, quando ambos viviam nos Estados Unidos. Antes do seu casamento com Auden, Erika esteve casada, de 1926 a 1929, com o famoso actor alemão Gustav Gründgens, também ele homossexual e que se tornaria no mais importante comediante do III Reich. A ele me refiro neste post. Gründgens é considerado o mais notável intérprete de sempre do papel de Mefisto do Fausto, de Goethe. Klaus, que escreveu um romance sobre ele, nunca lhe perdoou a sua contemporização com o regime nazi, beneficiando da protecção simultânea de Göring e de Goebbels, em troca do apoio à sua carreira.

Dos cinco irmãos de Thomas Mann apenas Heinrich se distinguiu. Começando a escrever antes do irmão, acabou pobre e ofuscado pela imagem deste. Ficou conhecido nomeadamente pelo seu livro Professor Unrat, que serviu de argumento ao mundialmente conhecido filme O Anjo Azul, de Josef von Sternberg, com interpretação de Marlen Dietrich.

Das irmãs, Julia Mann, pelo casamento com o director bancário Josef Löhr tornada Julia Löhr, teve uma vida atribulada tendo-se tornada morfinómana. Por isso, e também devido às suas relações extraconjugais, enforcou-se; Carla Mann foi actriz de teatro e a fim de não sobrecarregar a família decidiu casar-se. Devido a um suposto caso envolvendo o seu noivo Arthur Gibo, suicidou-se com cianeto.

O último irmão, Viktor Mann, permaneceu na Alemanha durante o período nazi, servindo na Wehrmacht. Um ano antes de morrer escreveu um livro intitulado Retrato da Família Mann.

Dos filhos de Thomas Mann, Erika (que já referimos acima) foi actriz, artista de cabaret, e também escritora, editora, conferencista, jornalista e activista política. Finalmente, tornou-se secretária de seu pai; Klaus Mann tentou ser um grande escritor, que não foi, como o seu pai, mas deixou algumas obras interessantes, nomeadamente Mephisto, sobre o actor Gründgens, referido também acima. Interessou-se pelo teatro, tendo representado e encenado, foi activista político, mas dedicou-se especialmente aos homens, como desenvolto homossexual criado na República de Weimar, época de grandes transformações. Um dos seus amantes, Richard Hallgaten (Ricki), pintor judeu alemão convertido ao protestantismo, suicidou-se com um tiro na cabeça, na véspera de iniciar, com Erika, Klaus, Annemarie Schwazenbach e outros amigos uma longa viagem à Ásia Menor, Pérsia e Rússia. Dependente desde muito jovem de drogas, Klaus também se suicidou em Cannes com uma overdose de soníferos; Golo Mann foi escritor, historiador e filósofo e, depois do seu regresso à Alemanha após o seu exílio nos Estados Unidos durante a guerra, professor da Universidade de Stuttgart, da qual foi demitido em 1963, devido a ser homossexual. A homossexualidade era então punida na República Federal da Alemanha com pena de prisão! Os seus livros mais importantes são Guilherme II, De Weimar a Bonn e Wallenstein; Monika Mann tentou uma carreira musical e foi depois escritora. Casou com o historiador húngaro Jenö Lányi em Itália e quando ambos viajavam de Londres para o Canadá fugindo à guerra, o navio foi atingido por um submarino alemão. Jenö morreu e Monika sobreviveu mas ficou traumatizada durante muitos anos. Viveu depois em Capri com Antonio Spadaro e passou o resto da vida com a família adoptiva de seu irmão Golo; Elisabeth Mann dedicou-se à escrita e casou-se com o professor italiano Giuseppe Antonio Borgese, quase da idade do seu pai. Teve geração, tendo vivido, após enviuvar, com o psiquiatra italiano Corrado Tumiati; Michael Mann foi músico, compositor e professor. Casou com Gretchen (Gret) Moser e teve descendência. Segundo Thomas Mann, era o seu único filho normal.

Acima se declinou, em absoluto resumo, a biografia dos irmãos e filhos de Thomas Mann.

O escritor nasceu em Lübeck, como se disse. Após a morte do pai, a mãe mudou-se com os filhos para Munique, onde Thomas casou e residiu até à sua partida para a Suíça, com o advento do nazismo. Viveu depois exilado nos Estados Unidos, regressando à Suíça após o fim da guerra. Na Suíça morreu. 

O livro, para lá de nos contar, de forma excepcional, a vida de Thomas Mann é também um fresco da Alemanha. Mann nasceu  e ainda viveu muitos anos durante o Segundo Império Alemão (o II Reich); suportou as dificuldades da Primeira Guerra Mundial, permaneceu durante a República de Weimar e a efémera República Soviética da Baviera (1919), de Ernst Toller e Gustav Landauer; assistiu à emergência do nazismo, tendo-se retirado para a Suíça em 1933, ano da chegada de Adolf Hitler ao poder. Permaneceu na Suíça até 1938, data em que se exilou nos Estados Unidos. Regressou à Europa em 1952, tendo-se instalado em Kilchberg, próximo de Zurique, onde morreria em 1955. Visitara a Alemanha em 1949, discursando em Frankfurt, terra natal de Goethe (zona então pertencente à República Federal da Alemanha) e em Weimar, terra de adopção de Goethe (então na zona da República Democrática Alemã). As autoridades americanas tentaram a todo o custo evitar que Mann se deslocasse à RDA, mas o escritor, em homenagem a Goethe, não cedeu, vindo até a ser classificado de comunista, numa altura de forte perturbação anticomunista nos EUA, obsessão que ainda hoje permanece, embora mais atenuada. É claro que Thomas Mann, que apesar das vicissitudes foi toda a vida um burguês e nunca conheceu dificuldades económicas, vivendo sempre rodeado de luxo e de conforto, jamais seria um adepto do comunismo.

Ao longo das suas 600 páginas, o autor mostra-nos as transformações ocorridas na Alemanha durante quase um século, as privações da Primeira Guerra Mundial, a crise económica, social e política da República de Weimar, que esteve na base da emergência do regime nazi, a destruição do país na Segunda Guerra Mundial e o ressurgimento de uma Alemanha partida no pós-guerra. O escritor já não assistiria à reunificação.

O primeiro grande romance de Mann foi Os Buddenbrooks (1901), que descreve a desagregação e falência de um empório familiar, no caso a história da grandeza e decadência da sua própria família. Com tão evidentes semelhanças, Mann foi muito censurado pelos parentes mas o livro obteve um sucesso.

A novela A Morte em Veneza (1912) tornaria Mann famoso. Mais ainda depois do filme de Luchino Visconti. Importa que nos detenhamos um pouco sobre este livro. Tendo passado com a mulher umas férias no Hotel Lido de Veneza, o escritor apercebeu-se que numa mesa próxima se encontrava uma família polaca de que um dos membros, Tadzio, era um maravilhoso adolescente pelo qual Mann se apaixonou, ainda que nunca tivessem trocado palavra. A própria mulher de Mann se apercebeu da perturbação do marido mas como conhecia as suas verdadeiras preferência por vezes até favorecia certos encontros. Este episódio estival forneceu a Mann o argumento da novela. Mais tarde, em 1971, Visconti realizou o filme homónimo com música de Gustav Mahler. Se o livro foi célebre, o filme ressuscitou Mann e tornou Visconti celebérrimo. E, de certa forma, levou Mahler, já considerado um compositor notável, ao conhecimento de todo o mundo. Hoje, ninguém minimamente cultivado ignora o adagietto  da Quinta Sinfonia de Mahler, utilizado como leitmotiv no filme. Note-se que Mahler era amigo da família da mulher de Thomas Mann e há mesmo quem suspeite que o próprio compositor possuía inclinações homossexuais. Sobre A Morte em Veneza publiquei em 2014 um desenvolvido post .

A estada de Katia Mann num sanatório em Davos (local onde nos nossos dias se reúne o Forum Económico Mundial), onde Thomas chegou a passar uns tempos a fazer-lhe companhia, forneceu-lhe o ensejo de escrever um volumoso romance, A Montanha Mágica (1924), que aumentou ainda mais a sua reputação.

Em 1929 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Literatura.

De 1933 a 1943, Mann publicaria a obra em quatro volumes José e os seus Irmãos.

Em 1947, Thomas Mann, inspirando-se na figura do compositor judeu alemão Arnold Schönberg, também exilado nos Estados Unidos, publicaria o seu último livro notável, o Doutor Fausto. Sobre esta obra, escrevi em 2020 este post. A obra motivaria os protestos de Schönberg, o criador do dodecafonismo.

Em 1954, deixou inacabado o livro iniciado em 1922 As Confissões de Felix Krull Cavalheiro de Indústria, posteriormente publicado e onde Mann faz, de alguma forma, um retrato de si mesmo.

É claro que a obra de ficção de Thomas Mann é muitíssimo mais vasta, além da obra ensaística e de intervenção política, e do seu Diário, que ele próprio destruiu parcialmente por óbvias razões.

Thomas Mann foi uma pessoa de trato difícil. Não manteve regularmente relações muito próximas com os filhos, a quem não permitia que perturbassem o seu trabalho, embora por vezes lhes apresentasse alguns truques de magia que eles muito apreciavam e  em consequência do qual lhe começaram a chamar "o mágico". Pode dizer-se que viveu praticamente só para ele, para os seus escritos, para o seu prestígio, para a sua conta bancária e o seu conforto. Não terá sido o único e não deixa, por esse facto, de ser um imenso escritor. Também Richard Wagner, um gigante da música, foi especialmente interesseiro e pouco escrupuloso o que não obsta a ser considerado um dos maiores compositores de todos os tempos.

A propósito de Wagner, manifestamente anti-semita, importa recordar que Alfred Pringsheim, o sogro de Thomas Mann, era, apesar de judeu, um grande admirador de Wagner, tendo mesmo contribuído para as célebres produções de Bayreuth. E foi Winifred Wagner, a nora de Richard Wagner, confessada admiradora de Hitler, por quem professava uma verdadeira paixão [Hitler era um entusiasta de Wagner e um frequentador habitual dos festivais de ópera de Bayreuth e prestava todas as homenagens a Cosima Wagner, a viúva do compositor], embora dissesse não ser nazi (!) quem ainda obteve do Führer a permissão para o casal Pringsheim (que se recusara a abandonar a Alemanha mesmo depois da instauração do regime nazi) sair finalmente do país (quando tudo estava perdido) para a Suíça, onde viria a morrer.

Ao contrário de muitos outros escritores, Thomas Mann recusou sempre admitir publicamente a sua homossexualidade, embora a deixasse (apenas) entrever em alguns dos seus escritos. Optou por ser o chefe de uma família realmente bastante disfuncional, pai de seis filhos, esposo exemplar e mesmo politicamente acomodatício. Apesar das invectivas do irmão Heinrich e dos filhos Erika e Klaus, levou tempo a tomar uma posição pública sobre o nazismo e mais ainda a condená-lo, só o fazendo quando não corria quaisquer riscos visto já estar exilado na América. 

A sua obra Considerações de um apolítico (1918) exprime as suas considerações políticas (em sentido geral) que professava à época, embora enveredasse posteriormente por um pensamento mais liberal que o conduziria a condenar finalmente o regime hitleriano.

O livro de Colm Tóibín é uma obra magnífica. Sendo uma biografia romanceada lê-se com mais prazer do que uma biografia "oficial", como existem muitas de Thomas Mann, com especial destaque para a de Peter de Mendelssohn. Deve ler-se Le Magicien, pois só assim se poderá avaliar da vida do escritor e apreciar os inúmeros pormenores que não têm cabimento neste post, que aliás já vai longo.