domingo, 22 de março de 2020

HISTÓRIAS VIRAIS




Dado o inegável interesse geral, transcrevo com a devida vénia (em tradução minha) o artigo 'Récits viraux' publicado em "Le Nouveau Magazine Littéraire" deste mês (Nº 27), por Alexis Brocas:

O CORONAVÍRUS DESPERTOU FANTASMAS ANTIGOS EM QUE SE MISTURAM RUMORES, ODORES RACISTAS E ANGÚSTIAS DE TRANSGRESSÃO. COMO AS CALAMIDADES QUE SE ABATEM SOBRE A CIDADE NO ÉDIPO REI, OU SOBRE O EGIPTO NO ANTIGO TESTAMENTO

A epidemia do coronavírus inspirou uma ficção colectiva e racista: a que pinta os chineses como comedores de morcegos na sopa. Isto lembra uma outra ficção colectiva e racista, nascida com a sida, segundo a qual o vírus teria passado dos macacos do Camarão ao homem via uma relação sexual. Certamente, ambas as ficções são falsas: os morcegos acolheram provavelmente os vírus, mas os chineses não os incluem na sua gastronomia. Eles são, pelo contrário, consumidos na sopa nas ilhas de Palaus, na Micronésia (sem qualquer caso conhecido de contaminação), e foram, parece, as imagens de uma blogger chinesa saboreando esta especialidade local que lançaram o rumor. Igualmente, estabeleceu-se que a sida passou dos macacos aos homens via feridas de caça ou consumo de carne do mato. Mas estas ficções são reveladoras: ambas colocam, nas origens da epidemia, uma transgressão, um acto de consumo antinatural e bestial, em todos os sentidos do termo. Ambas encaram a doença como um castigo atingindo a comunidade em resposta à falta de um ou de alguns indivíduos culpados de bestialidade - e daí a sua conotação racista. E estas ficções racistas beneficiam, infelizmente! de uma difusão também ela epidémica: desde A Peste, de Camus e Rinoceronte, de Ionesco, sabemos que a metáfora da doença descreve de forma muito exacta a maneira como as ideologias mortíferas e o seu cortejo de ficções odiosas se transmitem de um cérebro a outro e transformam os seus proprietários em carrascos potenciais de bodes expiatórios designados.

A ideia segundo a qual a transgressão de um só atrai uma epidemia sobre uma multidão é muito antiga. Encontra-se desde Édipo Rei, de Sófocles. O começo da peça mostra a cidade de Tebas entregue a uma epidemia de peste. Édipo deverá elucidar a razão pela qual o Olimpo infligiu essa calamidade à cidade. E essa razão é, evidentemente, ele mesmo, Édipo, e a dupla transgressão - parricídio e incesto - que ele cometeu de nada sabendo. Uma dupla transgressão que viola dois tabus fundamentais das sociedades humanas. Acrescentam-se aqui as subtilezas próprias do mito: os deuses manipulam Édipo para o levar a transgredir as leis dos homens, depois castigam toda a cidade por essas transgressões que eles mesmos cometem alegremente. Hoje, dir-se-ia injunções contraditórias.

Com a mesma ideia e no Antigo Testamento, a história das pragas convocadas por Moisés sobre o Egipto pode ler-se como uma ficção inventada a posteriori justificando, pelo crime de um só, um desencadear de calamidades naturais para as quais os cientistas de hoje encontraram explicações concretas: seca, contaminação das águas pelas algas vermelhas, enxame de mosquitos e epidemia de leishmaniose... No conto bíblico, o autor do crime original é o Faraó, que se opõe à vontade do verdadeiro Deus recusando deixar partir o povo eleito. Com uma variante notável: o Faraó não transgride adoptando um comportamento bestial mas afirmando-se como representante de falsos deuses. O crime de orgulho idólatra é maior que o de bestialidade? O resultado, em qualquer caso, é o mesmo: o mal abate-se sobre a colectividade.

Hoje, tendemos a acreditar que o pensamento conspirativo vive uma idade de ouro graças às redes sociais capazes de o propagar instantaneamente. É conhecer mal os poderes da transmissão oral. Na primavera de 1321, o sul de França é atormentado por um rumor que se comunica ao reino de Aragão: os leprosos, agindo por conta dos judeus, eles mesmos instigados pelos muçulmanos de Espanha, procurariam envenenar a população cristã da Europa contaminando os poços. Esta ficção paranóica será levada a sério pelo rei Jaime V [creio que é um lapso do autor. Deverá ser Jaime II. Aliás não houve Jaime V em Aragão]: nomeia um inquisidor, ordena que os leprosos sejam submetidos à questão. É claro que estes confessam... Esta teoria conspirativa, apesar dos seus contornos arcaicos, encontra cem equivalentes modernos. Assim, existe, na Internet, uma literatura acusando Bill Gates e os grandes nomes de Silicon Valley de terem fomentado a epidemia do coronavírus para diminuir a população mundial...

A figura do leproso medieval é contudo mais ambígua do que este episódio deixa crer. De um lado, as populações medievais vêem perfeitamente que a lepra atinge pessoas isentas de pecados maiores - tal o poeta Jean Bodel, que contrai a doença à partida da cruzada, em 1205. Contudo, a ideia de que os males estão ligados a uma transgressão bestial resiste através da lenda da insaciável lubricidade dos leprosos. Para a Idade Média - cuja medicina assimila os humores corporais ao carácter -, é natural reunir o fogo da doença que devora as carnes dos lazarentos ao fogo do desejo que devora as almas. A lubricidade dos leprosos é então tão proverbial que as casas onde vivem, chamadas "bordas" (porque se encontram nas bordas da estrada para facilitar a mendicidade) estarão na origem da palavra "bordel". E essa imagem do leproso lúbrico encontra-se nomeadamente no Tristão e Isolda, quando o rei Mark se deixa convencer pelo chefe de um bando de leprosos a entregar-lhe a sua infiel Isolda para a castigar: "Olha: tenho aqui cem companheiros. Dá-nos Isolda e que ela nos seja comum! O mal atiça os nossos desejos. Dá Isolda aos teus leprosos, nunca mulher alguma terá uma vida pior que a sua. Vê, os nossos trapos estão colados às nossas chagas que ressumam." Mas, nos leprosos lúbricos, o laço entre transgressão e punição é inverso: a lubricidade bestial dos leprosos não está na origem da sua doença, mas é sua consequência. Como se a relação entre epidemia e transgressão, desmentida pela observação, devesse ser mantida por todos os meios.

Com os primeiros microscópios capazes de tornar as bactérias visíveis (em 1668 na Holanda), depois Pasteur, as epidemias perdem a sua origem sobrenatural. Isto, contudo, não põe termo ao mito de uma transgressão inicial e às teorias conspirativas relacionadas. A partir de agora estas transgressões já não são culinárias ou sexuais, mas científicas. Esta ideia encontra-se na literatura de ficção científica apocalíptica do século XX. Em Le Fléau do americano Stephen King, ou na série Le Passage, de Justin Cronin, são sábios imprudentes e sem fé que, manipulando vírus, desencadeiam epidemias que erradicam o essencial da população mundial. Estes vírus podem também transformar os doentes em monstros - em vampiros, em Justin Cronin ou no clássico Je suis une légende de Richard Matheson. Ainda aqui, o esquema repete-se e sofistica-se: porque zombam da ética da sua profissão, os investigadores desencadeiam sobre o mundo um flagelo que transforma as suas vítimas em criaturas transgressoras... Como se fosse impossível desfazer-se do imaginário original. Como se o primeiro sintoma destas epidemias fosse suscitar ficções que nos conduzem sempre a uma transgressão original e à designação de um bode expiatório. Como se esta dramaturgia estivesse tão profundamente inscrita nos nossos cérebros por milénios de pensamento mágico do qual fosse impossível libertar-nos. Contudo, um escritor consegui-o: o britânico H.G. Wells. Isso acontece no fim da sua Guerra dos Mundos, quando os marcianos que invadiram a Terra se vêem exterminados por um inimigo insuspeito: os vírus e as bactérias que enxameiam o nosso planeta e contra as quais os seus organismos não têm defesa! Simultaneamente inesperada e cientificamente fundada, a ideia de Wells retoma ao contrário todas as ficções anteriores.


2 comentários:

sociedade estudos século XVIII disse...


Li com muito interesse. Obrigada. Abraço. Maria Helena CS

Anónimo disse...

Texto de oportuno interesse, exemplificando muito bem a necessidade humana por lendas explicativas dos desastres e cataclismos. É verdade que é sempre a transgressão da norma, depois o pecado, depois a diversidade do comportamento razoável. As modernas "teorias da conspiração" são um reflexo actial dessa ânsia por mitos explicativos que decifram o que se anuncia como mistério imune à solução racional. E estamos assim desde os egípcios,gregos,hebreus,etc. De facto os homens não mudam muito ao longo dos milénios...
Quanto ao Tristão,é divertido observar como a cena da vingança do rei Mark, no romance original,desaparece na ópera wagneriana. Evidentemente o Wagner não queria dar sugestões sinistras ao seu bom amigo Von Bulow...