segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

FELLARE ET IRRUMARE



Chegou às minhas mãos, por feliz acaso, La Fabuleuse Histoire de la Fellation (2014), do professor Thierry Leguay, que morreu em 2016, com 62 anos.

Trata-se de um livro curioso, e raro, já que, existindo milhares de livros sobre a vida sexual, são escassos os que abordam uma actividade praticada habitualmente desde a mais alta Antiguidade, mas escassamente referida nas obras literárias.

A designação culta em português é "felação", com tradução equivalente nas demais línguas ocidentais. Numa linguagem vulgar os portugueses dizem "broche", embora existam outras expressões correntes. O que não há hoje, pelo menos no Ocidente, é a existência de dois termos, consoante o acto é considerado activo ou passivo. Os romanos, como escrevi em posts anteriores sobre a vida sexual na antiga Roma, utilizavam dois verbos distintos: fellare, para qualificar o acto de chupar e irrumare, para o acto de ser chupado. O primeiro, considerado infamante, correspondia a uma posição passiva e o segundo, considerado nobre, a uma posição activa. Nos nossos dias, a palavra latina fellatio corresponde às duas posições, e o irrumatio latino não é utilizado.

O livro está escrito numa perspectiva heterossexual, mas não deixa de considerar a vertente homossexual, já que é nesta, por razões óbvias, que o acto é, proporcionalmente, mais praticado.

O autor percorre rapidamente a literatura francesa, para constatar que os escritores "oficiais" pouco têm referido nas suas obras a prática da felação. Cita Rabelais, Corneille, Maupassant, Verlaine, Apollinaire, Mandiargues, Emmanuelle Arsan, Pauline Réage e Marguerite Duras, entre os mais conhecidos.

Sobre a frequência das práticas Leguay remete para as percentagens do célebre Rapport Kinsey, hoje certamente desactualizado.

Percorrendo o tempo, refere que a felação seria praticamente ignorada na Pré-História, já que é quase inexistente a sua representação nas gravuras. Mas, entrando na História, verifica-se que ela seria corrente no Egipto, todavia menos na Mesopotâmia. Nas velhas Grécia e Roma era prática corrente, como na Índia (ver Kama-Sutra) e na China. No Islão clássico está praticamente ausente das obras literárias, o que não significa a sua inexistência. Por seu turno, os incas seriam largamente partidários desta forma de actividade sexual. No continente negro ela seria rejeitada (em tempos idos), mas não na Oceania, onde constituiria iniciação sexual. Leguay salienta ainda uma aceitação plena no Extremo-Oriente, mas não na Gronelândia.

O autor evoca depois o começo do mundo e o pecado original e faz alusão a Lilith, que Adão teria conhecido antes de Eva, e que terá sido a primeira feladora da História! E debruça-se depois sobre o conceito do pecado carnal, na perspectiva da Igreja Católica. Segundo esta, relações sexuais só com vista á procriação. O próprio onanismo foi fulminado durante séculos como atentatório da saúde e pecado mortal.

No capítulo "Les mots et les mets", é referido um tratado do mago Aleister Crowley (que se relacionou com Fernando Pessoa), de 1910, onde este apresenta 16 maneiras de fazer felação e é referida a correspondência entre o acto de comer e o de realizar felação. Assim, o gozo sexual seria equivalente ao prazer gastronómico. Ou seja, a boca, órgão da alimentação e da palavra seria também o do prazer sexual gratuito. «Le sperme est le mot du vocabulaire sexuel qui connaît le plus d'équivalences alimentaires: c'est le bouillon, la confiture, la crème, l'eau-de-vie (ou l'eau-de-vit!), le fromage, l´huile, la laitance, la liqueur, la semoule, le sirop... Donc, une substance destinée à être avalée.» (p. 120) . Escreve o autor: «Le sperme est un élixir, un nectar, une onction. Image sans cesse présente dans la littérature érotique: 'Je la remis dans ma bouche et la suçait très longuement, comme on suce son puce, le sein de sa mère, la vie, pendant qu'il gémissait et haletait, toujours, jusqu'à ce qu'il éjacule, dans une plainte aiguë, et que je boive son sperme, sa sève, son don.' (Alina Reyes, Le Boucher)» (pp. 121-122)

Seguem-se outras citações de obras, e uma referência ao apetite devorador que pode chegar à castração, como é o caso do filme de Nagisa Oshima, O império dos sentidos (1976). Depois, o autor analisa as relações sexuais com animais e dedica um capítulo às "Perversões". Remete-nos para os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, onde este analisa o uso sexual das mucosas bocais e refere-se ao "phallus passif" evocado por Maria Bonaparte (que foi psicanalisada por Freud) em La Sexualité de la femme (1949)

Tratando da homossexualidade em especial, Leguay recorre a Le Sexe et l'Effroi, de Pascal Quignard, que analisámos em post anterior, e cita Renaud Camus, no seu livro Tricks: «Morgan a repris sans tergiverser sa posture antérieure, à genoux devant moi, mon sexe dans sa bouche. Il le suçait avec énormément de savoir-faire, complétant du pouce et de l'index l'oeuvre de ses lèvres et de sa langue, et se branlant de l'autre main. [...] je n'avais pas envie d'éjaculer dans sa bouche.» (p. 152)

É evocada ainda a auto-satisfação, lembrando a publicação em 1982, pelo jornal "Libération", de três fotografias de um homem nu, numa evidente proeza de ginástica, chupando-se a si mesmo. O livro refere ainda notícias dos séculos XIX e XX, em que alguns homens jovens praticavam felação activa e passiva com adolescentes.

O livro indica depois a felação representada em peças existentes em museus e apresentada em filmes. E debruça-se sobre as técnicas utilizadas quotidianamente na felação.

Termina com o fait-divers do presidente Clinton e com o episódio de Dominique Strauss-Kahn.

Há que reconhecer que a arrumação da matérias é um pouco confusa; esta obra necessitaria de um trabalho de edição. O próprio autor confessa no Post-Scriptum: «Un livre est avant tout une aventure. Loin de vouloir imposer un point de vue ou exposer un savoir, on va à la recherche de l'inconnu (en nous-mêmes aussi), dans le désir de l'offrir à quelques lecteurs. En ce sens, cette "histoire et géographie" de la fellation aura dessiné, pour moi, un voyage des plus séduisants, et des plus troublants, pour toutes les surprises et les questions découvertes au détour du chemin.»

1 comentário:

Zephyrus disse...

Tenho uma traducao das edicoes 70 sobre a Sumeria e Mesopotamia. O autor refere que a partir da traducao de milhares de barrinhas de argila pode-se concluir que a penetracao anal entre homens jovens seria frequente e relativamente tolerada, especialmente quando ainda eram solteiros ou tinham menos de 30 anos, mas existiria uma rejeicao do sexo oral entre homens. Muito ha a dizer, mas ha tematicas que devem ser abordadas apenas em privado. Penso, por exemplo, em algumas seitas do Cristianismo primitivo.Agradeco ao autor a sugestao desta obra.