domingo, 23 de fevereiro de 2020

REGRESSANDO A EDMUND WHITE




Comprei La Bibliothèque qui Brûle, de Edmund White, na antiga Livraria Arco-Íris, no velho Centro Comercial Apolo 70, em 1997, ano da sua publicação. O original havia sido publicado em 1994, com o título The Burning Library.

Edmund White é um dos grandes escritores norte-americanos ainda vivos (n. 1940), romancista, ensaísta, memorialista, biógrafo, autor de vasta obra, incidindo especialmente sobre temas gays. Dos seus livros de ficção, distinguem-se Nocturnes for the King of Naples (1978) e a célebre trilogia autobiográfica constituída por A Boy's Own Story (1982), The Beautiful Room is Empty (1988) e The Farewell Symphony (1997). As suas biografias são dedicadas a Genet (1993), ainda hoje a biografia de referência, a Proust (1998) e a Rimbaud (2008).

Em La Bibliothèque qui Brûle, White reúne textos diversos, publicados nos anos 70, 80 e 90, nomeadamente sobre a cena gay e sobre a vida e obra de outros escritores, alguns dos quais entrevista pessoalmente. Salientam-se Truman Capote, William Burroughs, Nabokov, Danilo Kiš, Juan Goytisolo, Genet, Hervé Guibert.

Algumas das reflexões do autor, constantes destes textos, encontram-se hoje um pouco desactualizadas, já que sobre elas passaram 30, 40 ou 50 anos, mas é inegável o seu interesse e a perspicácia com que White observa a realidade que o cerca. Outras há que continuam a constituir um retrato, ora irónico, ora cruel, da sociedade humana.

Deve assinalar-se uma notável entrevista que White concedeu em 1988 à "Paris Review" e os textos consagrados a Goytisolo e a Un captif amoreux, de Genet.

Edmund White é o sobrevivente de uma longa lista de autores famosos que marcaram a literatura norte-americana e mundial.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

J'ACCUSE





Fui ver ontem J'accuse, o mais recente filme de Roman Polanski (2019), cuja tema é o famoso caso Dreyfus e cujo título é o do artigo publicado pelo romancista Émile Zola, em 1898, na primeira página do jornal "L'Aurore", sob a forma de carta aberta ao presidente Félix Faure (que curiosamente morreria no ano seguinte, no Eliseu, quando se encontrava na companhia da sua amante, depois de ter presidido a um Conselho de Ministros dedicado ao caso Dreyfus) reclamando a revisão do processo. Existe, aliás, mais de uma dezena de filmes e talvez uma centena de livros sobre o caso Dreyfus.



O affaire Dreyfus, que depois da carta de Zola passou a ser designado l'Affaire, dividiu profundamente a sociedade francesa. Não cabe aqui descrever os sucessivos episódios do caso, que serão do conhecimento público, pelo menos das pessoas interessadas nestas matérias, mas importa referir alguns factos.

Em 1894, o capitão Alfred Dreyfus, judeu francês de origem alsaciana, foi acusado de ter entregue aos alemães documentos secretos do exército e, em consequência, julgado em Conselho de Guerra, condenado à degradação militar e à prisão perpétua. A prova era uma carta, que ficou conhecida como "le bordereau" encontrada na Embaixada da Alemanha, contendo informações sobre o armamento francês. A caligrafia identificava Dreyfus como o único oficial capaz de ser o seu autor.

A opinião pública francesa, largamente anti-semita à época (e possivelmente ainda hoje) cerrou fileiras contra aquele crime de alta traição.

Em 1896, o coronel Georges Picquart, chefe da contra-espionagem,  descobriu que o verdadeiro autor do documento era outro oficial do exército, este de origem húngara, Charles Esterházy (que nunca chegaria a ser condenado) e em 1897 o irmão de Dreyfus apresentou queixa contra o Ministério da Guerra.

Em 1898, Zola publica a célebre tribuna "J'accuse", exigindo ao presidente da República a reabertura do processo, pelo que seria condenado pelo crime de difamação, bem como o editor do jornal.

Entretanto o assunto inflama a França e divide os franceses entre "dreyfusards" e anti-dreyfusards". As várias instâncias do Exército tentam minimizar os danos, mas não conseguem evitar a divulgação de notícias comprometedoras. Em 1899, o julgamento de Dreyfus é anulado mas este novamente julgado em Conselho de Guerra, continuando a ser considerado culpado e condenado agora a 10 anos de prisão. 

A França segue apaixonadamente o processo Dreyfus, devido também à questão da Alsácia-Lorena e a um crescente sentimento anti-alemão, que conduziria à Primeira Guerra Mundial. As autoridades militares procuram salvar a face recusando admitir o erro inicial e as suas chefias, incluindo o ministro da Guerra, tentam encobrir-se. O escândalo avoluma-se de tal forma que em 1899 Dreyfus é amnistiado.

Em 1906, o capitão Alfred Dreyfys é finalmente reabilitado na sua honra e reintegrado no Exército.

Merece aqui uma palavra a obstinação do Exército. Muitos dos seus quadros superiores eram anti-semitas e observavam com crescente preocupação a política da Alemanha. Em consequência, e como a prova parecia evidente, fazia sentido que fosse Dreyfus o culpado. As dúvidas surgiram depois, mas com o seu espírito de corpo e a mística própria da instituição castrense o Exército foi procurando gerir a situação, mesmo quando era já evidente que se tratara de um lamentável erro. Só passados mais de dez anos, com alguns dos actores deste caso já mortos, foi possível fazer-se justiça. As Forças Armadas, que são, no conceito tradicional, a reserva moral das nações, regem-se por um código de honra poucas vezes compreendido pela sociedade civil. Assim, era inconcebível para o Exército francês admitir a sua culpa. Hoje, que as Forças Armadas dos países estão mercenarizadas e submetidas à justiça ordinária, com as vantagens e os inconvenientes que essa solução comporta, dificilmente o caso Dreyfus seria possível. Temos presentemente entre nós o caso flagrante do roubo ocorrido em Tancos.

Falando propriamente do filme, não é ele uma das melhores películas de Polanski. Falta-lhe o golpe de asa que celebrizou algumas das suas anteriores obras. A primeira meia hora é mesmo confusa para quem desconheça o tema, devido ao recurso sistemático ao flashback, nem sempre devidamente assinalado para a boa compreensão do espectador. Refere o autor que as personagens são autênticas, do que não duvido relativamente às figuras principais. Mas ignoro se o caso amoroso do coronel Picquart ou a relação homossexual entre os adidos militares da Alemanha e da Itália em Paris são factos históricos. Parece-me que Roman Polanski não pretendeu (nem se lhe poderia exigir) uma fiel reconstituição histórica - aliás impossível - mas antes um filme (com alguns contornos ficcionados) sobre um caso que apaixonou a França e que teve repercussões por toda a Europa.

Acrescente-se que o filme se baseia no livro An Officer and a Spy, de Robert Harris e que o tema interessava muito a Polanski que, sendo também judeu, pretendia render homenagem ao oficial injustamente condenado. Esteve para ser realizado em 2012 mas dificuldades várias impediram até ao ano passado a sua produção, agora assegurada por Alain Goldman, curiosamente também judeu.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

NOVAMENTE A QUEIMA DOS LIVROS?


Clique na imagem para conseguir ler

O "Nouveau Magazine Littéraire" publica no seu nº 26, deste mês de Fevereiro, um artigo de Alain Dreyfus que apresento acima.

Trata-se de um texto que demonstra a hipocrisia reinante em França a propósito do "caso" Gabriel Matzneff. 

Todo o mundo literário, e político, francês sempre soube das aventuras sexuais de Matzneff, já que ele mesmo se encarregou de as descrever em vários dos seus livros ao longo do último meio século. O escritor, que conta hoje 83 anos, manteve em tempos relações consentidas com menores de 16 anos (Les Moins de seize ans é o título de um dos seus livros, publicado em 1974), de ambos os sexos, que constituíram tema para a sua obra diarística ou ficcional.

Ora os livros de Matzneff, durante este meio século, nunca foram objecto de qualquer reprovação oficial, suscitando mesmo o aplauso  de alguns dos maiores vultos da literatura francesa, como Sartre, Simone de Beauvoir, Roland Barthes, Michel Foucault e tantos outros que têm sido citados nas últimas semanas. Houve mesmo, nos anos 70, um movimento em França para baixar para os 14 anos (ou seria para os 12, não me recordo) a maioridade sexual, movimento que recebeu o apoio de grande parte da intelectualidade francesa. Ainda em 2013 Matzneff foi galardoado com o Prémio Renaudot e durante a presidência de François Mitterrand era recebido por este no Eliseu.

É claro que os costumes mudaram (nada é mais relativo do que a moral sexual) e o comportamento de Matzneff é considerado hoje não só altamente censurável mas mesmo criminoso. Aliás, já ao tempo certas relações cairiam sob a alçada do Código Penal, mas jamais a Justiça se incomodou ou os mais altos expoentes da Cultura se preocuparam.

Foi preciso Vanessa Springora, que manteve uma relação com o escritor quando tinha 13 anos, ter publicado agora, mais de trinta anos depois dos factos, um livro relatando a sua experiência, que os guardiões da moral pública rasgaram as vestes.

Como se pode ler no artigo acima, a sua editora, a Gallimard, mandou retirar de venda os seus livros, o Ministério da Cultura retirou-lhe uma subvenção anual que lhe atribuíra em 2002 e o Governo prepara-se para lhe retirar igualmente o grau de oficial da Ordem das Artes e das Letras. E a Justiça abriu uma investigação e procura saber agora o nome das pessoas que mantiveram relações íntimas com Matzneff.

No passado dia 14 de Janeiro, no jornal "Le Monde", Dominique Fernandez, notável escritor e membro da Academia Francesa, afirmou, a propósito da eliminação dos seus livros que isso «signifie pour un auteur la mort professionelle, le renvoi dans le néant». Curiosamente, a Gallimard tem no seu catálogo um bom número de escritores malditos, mas providencialmente todos já mortos.

Não está em causa, no artigo acima, a avaliação do comportamento de Gabriel Matzneff mas tão só a profunda hipocrisia da sociedade francesa que sistematicamente ignorou esse comportamento, convivendo amistosamente com o escritor, e, apenas porque uma das suas conquistas resolveu insurgir-se agora contra ele em livro (ao que parece com grande êxito de vendas) decidiu voltar-lhe ostensivamente as costas.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

FELLARE ET IRRUMARE



Chegou às minhas mãos, por feliz acaso, La Fabuleuse Histoire de la Fellation (2014), do professor Thierry Leguay, que morreu em 2016, com 62 anos.

Trata-se de um livro curioso, e raro, já que, existindo milhares de livros sobre a vida sexual, são escassos os que abordam uma actividade praticada habitualmente desde a mais alta Antiguidade, mas escassamente referida nas obras literárias.

A designação culta em português é "felação", com tradução equivalente nas demais línguas ocidentais. Numa linguagem vulgar os portugueses dizem "broche", embora existam outras expressões correntes. O que não há hoje, pelo menos no Ocidente, é a existência de dois termos, consoante o acto é considerado activo ou passivo. Os romanos, como escrevi em posts anteriores sobre a vida sexual na antiga Roma, utilizavam dois verbos distintos: fellare, para qualificar o acto de chupar e irrumare, para o acto de ser chupado. O primeiro, considerado infamante, correspondia a uma posição passiva e o segundo, considerado nobre, a uma posição activa. Nos nossos dias, a palavra latina fellatio corresponde às duas posições, e o irrumatio latino não é utilizado.

O livro está escrito numa perspectiva heterossexual, mas não deixa de considerar a vertente homossexual, já que é nesta, por razões óbvias, que o acto é, proporcionalmente, mais praticado.

O autor percorre rapidamente a literatura francesa, para constatar que os escritores "oficiais" pouco têm referido nas suas obras a prática da felação. Cita Rabelais, Corneille, Maupassant, Verlaine, Apollinaire, Mandiargues, Emmanuelle Arsan, Pauline Réage e Marguerite Duras, entre os mais conhecidos.

Sobre a frequência das práticas Leguay remete para as percentagens do célebre Rapport Kinsey, hoje certamente desactualizado.

Percorrendo o tempo, refere que a felação seria praticamente ignorada na Pré-História, já que é quase inexistente a sua representação nas gravuras. Mas, entrando na História, verifica-se que ela seria corrente no Egipto, todavia menos na Mesopotâmia. Nas velhas Grécia e Roma era prática corrente, como na Índia (ver Kama-Sutra) e na China. No Islão clássico está praticamente ausente das obras literárias, o que não significa a sua inexistência. Por seu turno, os incas seriam largamente partidários desta forma de actividade sexual. No continente negro ela seria rejeitada (em tempos idos), mas não na Oceania, onde constituiria iniciação sexual. Leguay salienta ainda uma aceitação plena no Extremo-Oriente, mas não na Gronelândia.

O autor evoca depois o começo do mundo e o pecado original e faz alusão a Lilith, que Adão teria conhecido antes de Eva, e que terá sido a primeira feladora da História! E debruça-se depois sobre o conceito do pecado carnal, na perspectiva da Igreja Católica. Segundo esta, relações sexuais só com vista á procriação. O próprio onanismo foi fulminado durante séculos como atentatório da saúde e pecado mortal.

No capítulo "Les mots et les mets", é referido um tratado do mago Aleister Crowley (que se relacionou com Fernando Pessoa), de 1910, onde este apresenta 16 maneiras de fazer felação e é referida a correspondência entre o acto de comer e o de realizar felação. Assim, o gozo sexual seria equivalente ao prazer gastronómico. Ou seja, a boca, órgão da alimentação e da palavra seria também o do prazer sexual gratuito. «Le sperme est le mot du vocabulaire sexuel qui connaît le plus d'équivalences alimentaires: c'est le bouillon, la confiture, la crème, l'eau-de-vie (ou l'eau-de-vit!), le fromage, l´huile, la laitance, la liqueur, la semoule, le sirop... Donc, une substance destinée à être avalée.» (p. 120) . Escreve o autor: «Le sperme est un élixir, un nectar, une onction. Image sans cesse présente dans la littérature érotique: 'Je la remis dans ma bouche et la suçait très longuement, comme on suce son puce, le sein de sa mère, la vie, pendant qu'il gémissait et haletait, toujours, jusqu'à ce qu'il éjacule, dans une plainte aiguë, et que je boive son sperme, sa sève, son don.' (Alina Reyes, Le Boucher)» (pp. 121-122)

Seguem-se outras citações de obras, e uma referência ao apetite devorador que pode chegar à castração, como é o caso do filme de Nagisa Oshima, O império dos sentidos (1976). Depois, o autor analisa as relações sexuais com animais e dedica um capítulo às "Perversões". Remete-nos para os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, onde este analisa o uso sexual das mucosas bocais e refere-se ao "phallus passif" evocado por Maria Bonaparte (que foi psicanalisada por Freud) em La Sexualité de la femme (1949)

Tratando da homossexualidade em especial, Leguay recorre a Le Sexe et l'Effroi, de Pascal Quignard, que analisámos em post anterior, e cita Renaud Camus, no seu livro Tricks: «Morgan a repris sans tergiverser sa posture antérieure, à genoux devant moi, mon sexe dans sa bouche. Il le suçait avec énormément de savoir-faire, complétant du pouce et de l'index l'oeuvre de ses lèvres et de sa langue, et se branlant de l'autre main. [...] je n'avais pas envie d'éjaculer dans sa bouche.» (p. 152)

É evocada ainda a auto-satisfação, lembrando a publicação em 1982, pelo jornal "Libération", de três fotografias de um homem nu, numa evidente proeza de ginástica, chupando-se a si mesmo. O livro refere ainda notícias dos séculos XIX e XX, em que alguns homens jovens praticavam felação activa e passiva com adolescentes.

O livro indica depois a felação representada em peças existentes em museus e apresentada em filmes. E debruça-se sobre as técnicas utilizadas quotidianamente na felação.

Termina com o fait-divers do presidente Clinton e com o episódio de Dominique Strauss-Kahn.

Há que reconhecer que a arrumação da matérias é um pouco confusa; esta obra necessitaria de um trabalho de edição. O próprio autor confessa no Post-Scriptum: «Un livre est avant tout une aventure. Loin de vouloir imposer un point de vue ou exposer un savoir, on va à la recherche de l'inconnu (en nous-mêmes aussi), dans le désir de l'offrir à quelques lecteurs. En ce sens, cette "histoire et géographie" de la fellation aura dessiné, pour moi, un voyage des plus séduisants, et des plus troublants, pour toutes les surprises et les questions découvertes au détour du chemin.»

sábado, 8 de fevereiro de 2020

GABRIEL MATZNEFF E AS FOGUEIRAS DA INQUISIÇÃO

 
 
 
O famoso escritor francês Pierre Assouline transcreveu hoje, no seu blogue "La république des livres", o artigo publicado também hoje, por Thomas Clerc, no jornal "Libération":
 
 

L'ÂGE PIVOT
 

par Thomas Clerc

Quel beau télescopage de l’actualité littéraire et politique : on est en France. Quoi qu’on pense de l’homme Gabriel Matzneff (et on en pense plutôt du mal ces jours-ci), on ne peut nier complètement l’auteur d’un journal pas désagréable à lire, où la pédophilie joue un rôle… mineur, entre potins littéraires et visites à Mitterrand (François), tout ce qui fait le sel d’un genre peu prisé aujourd’hui, remplacé par des blogs haineux ou fades. Matzneff appartient à un autre âge, celui de l’impunité de la littérature, mais aussi celui d’une certaine conception du débat. Appelons-le, en hommage à son incarnation, «l’âge Pivot».

En revoyant la fameuse émission d’Apostrophes sur YouTube, qui fait scandale trente ans après (décidément la littérature n’est pas contemporaine), j’ai d’abord été saisi par la qualité du débat. Contrairement à ce qu’affirment les atrocités sur Internet, l’émission, d’une sobriété tendue, n’est pas à la gloire de Matzneff, taclé avec courage par Denise Bombardier. Profitant du décalage culturel passionnant entre l’esprit des années 90 et celui du vieux monde, elle a toute latitude pour renverser en sa faveur la rhétorique suintante d’un lettré trop sûr de lui. Or qu’entend-on partout ? Que l’émission est «ignoble», que Pivot est le valet de Matzneff, qu’il n’aurait jamais dû inviter, etc. Bref, on souhaite la mort des débats comme des pervers. Le problème, c’est que la littérature est le fruit de leurs amours.

Apostrophes était une émission géniale : grâce à elle, j’ai fait mon éducation littéraire contemporaine pendant mes années de formation. Nous regardions religieusement et ironiquement tous les vendredis soir, ma mère et moi, la reconstitution d’un télé-salon. Matzneff est-il le seul à en avoir profité ? Des sourds croient entendre des rires de complaisance pendant l’intervention de Bombardier ; ils émanent surtout des invités cachés derrière les écrivains (Jardin reste coi) : à la différence d’aujourd’hui où le public est sommé d’applaudir dans une arène fascisante, les réactions du public d’Apostrophes n’engagent que leurs auteurs. On n’était pas aux jeux du cirque, mais à une époque où la parole était ouverte, pivotante. Le malaise qui s’installe grâce au direct fait partie du jeu de la parole, qu’il ne s’agit pas d’interdire, mais d’écouter.

Apostrophes a beaucoup fait pour la littérature, la démocratie et la télévision. Pivot, d’abord, laisse parler ses invités : le temps n’est pas encore une denrée rare. Or rien ne dit que laisser parler quelqu’un, c’est l’approuver. Si Pivot n’avait dû inviter que les écrivains qu’il aimait, il n’aurait pas fait ce noble métier de journaliste. Mais à l’heure des flics de la Toile d’araignées, l’opinion publique ne tolère que des gens purs. Grâce à l’âge Pivot, j’ai pu former mon œil à l’éthique de l’écrivain. Godard disait justement qu’à la télé, on voit si quelqu’un ment ou non. Ainsi le personnage Matzneff joue-t-il sans le savoir en sa défaveur, en vertu de ce qui échappe à tout sujet parlant : sa manière d’être, son langage, son image de dandy faisandé qui exhale une complaisance qu’on retrouve dans son Journal, où autrui n’existe que comme faire-valoir. Mais, dans le même moment, ce rôle détruit en live par le clash de Bombardier, produit un très beau morceau de télévision. C’est là l’essentiel, et non l’immoralité de Matzneff, qui ne choquait personne à une époque où la pédophilie était souvent tolérée : à quoi sert-il de critiquer l’esprit d’un temps qui n’est plus le nôtre ? Il faut vivre au présent : dans vingt ans, on crachera sur nos mœurs.

La sobre mise en scène d’Apostrophes fut la garantie de son succès, créant des moments d’anthologie télévisuelle qui sont restés dans la mémoire collective, idéal moribond d’une culture commune : ce fut Nabokov caché derrière une pile de livres et révélant qu’on pouvait être un grand écrivain et un piètre orateur, l’esclandre du jeune Nabe, les bégaiements de Modiano, Bukowski ivre, Pacadis ou Annie Le Brun rivant leur clou aux féministes, moments paralittéraires grandioses. L’âge Pivot est hélas révolu : en face, l’émission insipide de François Busnel, dont pas un seul moment n’a jamais marqué et ne marquera jamais les mémoires, en raison de sa soumission aux lois du marché et de l’autopromotion, fait regretter sinon les «trois milliards de pervers» dont parlait le pro-pédophile Michel Foucault, du moins les quelques écrivains qui ont l’ignorance de leur propre bassesse, révélée par un chef-d’œuvre télévisuel.

THOMAS CLERC
 

(dans Libération du 8 février 2020)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

AUTOBIOGRAFIA DE PEDRO CANAVARRO




Li, esta semana, o recém-publicado livro de Pedro Canavarro, A Casa de Pedro, que reconstitui pormenorizadamente o seu percurso pessoal e profissional, desde os mais tenros anos até aos dias de hoje.

O autor, que conta 82 anos, terá certamente uma memória privilegiada, pois a evocação que faz de situações ocorridas há muitas décadas, minuciosamente descritas, chegaria a causar-me inveja, se fosse um sentimento que eu cultivasse. Há uma outra hipótese: Pedro Canavarro terá alimentado um diário, registando, desde muito novo, os factos que menciona. Acresce que o livro se encontra recheado de fotografias, cartas, poemas e muito outro material, o que indicia que o autor coleccionou os elementos essenciais para publicar, já na casa dos oitenta, o seu livro de memórias.


Pedro Canavarro e Eu - Teatro Primeiro Acto (1983)

Conheci pessoalmente Pedro Canavarro em 1983, aquando da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa, de que ele era Comissário-Geral, sendo eu director do Teatro Primeiro Acto, onde organizei, com ele, um ciclo de colóquios sobre aquele evento, com a participação de todos os colaboradores da exposição. E dele guardo a melhor impressão como pessoa e como homem de cultura. Já lá vão quase quarenta anos, e desde então poucas vezes nos temos cruzado, ainda que tenha acompanhado a sua actividade, nomeadamente quando foi presidente do Partido Renovador Democrático (PRD), criado por inspiração do general Ramalho Eanes.

Regressando ao livro, de quase 500 páginas, ele encontra-se dividido em oito capítulos, reportados a lugares seleccionados e com os quais o autor se relacionou, com enquadramento nas diferentes etapas da sua vida.

Assim, temos:

- O Jardim: da Infância à Flor de Laranjeira (1937-1966)
- O Terraço: dos Amores-Perfeitos ao Império do Sol Nascente ( 1966-1968)
- A Biblioteca: do Saber ao Mal-me-quer, Bem-me-quer de Abril (1968-1979)
- A Casa de Jantar: Do Poder à Dança das Cadeiras (1980-1989)
- Salas: Vivências de Tudo e de Nada (1989-1999)
- Sala Passos Manuel: As Gerações Passo a Passo (Séculos XVI-XXI)
- Sala do Piano: Da Casa do Porco à Casa Museu (2000-2017)
- O Quarto: Sol-Pôr (2018-......)

[Não sei se intencionalmente, o livro não tem índice dos capítulos]

Não vou descrever aqui a trajectória de Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro, trineto de Passos Manuel e aparentado com algumas ilustres famílias portuguesas, mas importa salientar alguns aspectos desta sua autobiografia.

Em primeiro lugar os anos de infância e juventude, os pais, a ligação à velha Casa de Santarém (construída por Passos Manuel), hoje transformada por ele em Casa-Museu, o tempo em que cursou, em Lisboa, as Faculdades (Direito e depois Letras).

A seguir, o casamento, a ida para Tóquio como primeiro Leitor de português numa das universidades da capital nipónica, as viagens ao estrangeiro, o interesse pela Arte.

Depois, os filhos, o divórcio, a assunção da homossexualidade e os primeiros companheiros de vida.

Um momento relevante foi o exercício das funções de Comissário-Geral da XVII Exposição, uma realização de envergadura que, dadas as circunstâncias da minha actividade, acompanhei de perto. O espaço reservado pelo autor à descrição detalhada de como tudo aconteceu relativamente a este evento talvez seja excessivo para o leitor comum, mas será, para o autor, o indelével registo de um tempo.


Pedro Canavarro com Yasser Arafat - Tunis, 1993

Também importante a sua experiência como presidente do Partido Renovador Democrático e deputado ao Parlamento Europeu, ainda que a vida político-partidária tenha sido, segundo o autor, em certa medida decepcionante. Mas a condição de eurodeputado proporcionou-lhe muitas viagens (Canavarro teve o privilégio de muito viajar durante toda a sua vida), entre as quais uma ao Norte de África, para reuniões na Argélia (então com recolher obrigatório e onde ficou em casa do nosso embaixador Ruy de Brito e Cunha) e na Tunísia, país que achou com mentalidade muito mais aberta. Em Tunis, teve ocasião de encontrar Yasser Arafat (que aí estava exilado), com quem teve uma interessante conversa, considerada mesmo íntima. Também em Tunis, durante uma conferência de imprensa ministerial, revela-nos Pedro Canavarro um curioso episódio (p. 363). Trocando olhares cúmplices com um belo e jovem agente policial da segurança, abandonou por algum tempo a mesa da sessão onde se encontrava e dirigiu-se para o átrio do hotel para onde o rapaz logo a seguir se dirigiu. Aí puderam depois conversar em privado, num discreto recanto do hall, como era, aliás, intenção de ambos. [A Tunísia é um país de inesperados e frutuosos encontros e os tunisinos considerados como dos mais simpáticos e amáveis árabes do Norte de África (não sei se hoje ainda é exactamente assim), razão porque, antes da revolução da "primavera árabe", a sua taxa de turismo aumentava de ano para ano. André Gide, já há um século, escreveu sobre as virtudes do povo tunisino e Michel Foucault chegou a ser professor na Universidade de Tunis.]

Também durante a permanência em Estrasburgo e Bruxelas, Canavarro visitou váris vezes a Holanda e a Alemanha, especialmente Bona, onde era nosso embaixador o seu amigo António Pinto da França. Refira-se também a estada de Canavarro na Grécia, onde teve a oportunidade especial de ficar alguns dias no Monte Athos, local de mosteiros bizantinos apenas acessível por mar, que tem um privilégio de extraterritorialidade (depende do Patriarca de Constantinopla)  e onde só podem penetrar homens. «Não é permitido o acesso sequer a uma galinha» (p. 370)

De regresso a Portugal, o autor resolveu fixar-se em Santarém, dedicando-se à Associação de Defesa do Património e ao Círculo Cultural Scalabitano. E também à Casa da Europa do Ribatejo. Refere também um bar que decidiu abrir em Santarém mas que foi obrigado a encerrar tempos depois, devido ao grande número de drogados que o frequentavam e começavam a perturbar a tranquilidade do lugar. Era uma época em que proliferavam nas ruas muitos drogados.

Em 1999, utilizando parte da sua fortuna, entretanto já reduzida por motivo de sucessivas partilhas mas ainda significativa, Pedro Canavarro decide constituir uma fundação para perpetuar a sua experiência de vida e a lembrança e o património restante da família. Ela será oficializada em 2000, com a designação Fundação Passos Canavarro - Arte, Ciência e Democracia. Ficará instalada na velha casa de Santarém, onde viveu Passos Manuel e por onde passou Almeida Garrett, doravante uma Casa-Museu, albergando o rico espólio familiar.

Em 2007, Canavarro celebrou o seu 70º aniversário,  com um jantar íntimo de família, antecipado por um almoço com os antigos empregados da casa e seus familiares. E, logo a seguir escreve: «No dia seguinte, partimos os dois para um local mágico, Veneza, onde não ia há mais de três décadas, em função de uma história, já relatada nos anos 70, deliberando, então, não voltar a essa cidade, já que a havia visitado, embora sozinho, numa atitude tão grande e intensa de amizade platónica. Após ver e ouvir, no Fenice, a "Morte em Veneza", de Benjamin Britten, jurei não mais voltar, a não ser que fosse de uma forma completamente distinta, ou seja, num acto de amor. Só uma tal atitude é que podia ultrapassar todo esse passado de amizade e morte.» (p. 443). Mas Canavarro não diz com quem foi, por distracção ou omissão.

O autor refere também insistências junto da Academia Nacional de Belas Artes, no sentido de motivar o interesse desta na trasladação de seu trisavô, Passos Manuel, para o Panteão Nacional. De facto, não faz o mínimo sentido que Passos Manuel, fundador desta Academia e do Panteão Nacional, não permaneça ali sepultado, quando já lá se encontram, com muito menos, ou nenhuma, justificação Humberto Delgado, Amália Rodrigues, Eusébio e Sophia de Mello Breyner.

A Casa-Museu de Santarém foi inaugurada em 14 de Maio de 2010, com a presença do Secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle e de outras personalidades. 

O livro termina com a reflexão do autor sobre o Quarto onde nasceu e onde espera morrer. Oportunidade para relembrar a vida já passada, meditando junto ao Cristo outrora oferecido por sua mãe.




A Casa de Pedro é um livro muito interessante, ainda que porventura demasiado extenso para o leitor comum. Compreendo bem a preocupação de Pedro Canavarro em registar com pormenor os passos da sua já longa vida, uma vida que se pode considerar bem vivida, recheada de sensações e aventuras, pontuada por inúmeras visitas ao estrangeiro e pelo conhecimento de algumas das mais importantes figuras suas contemporâneas. Uma vida vivida na cultura. Mas creio que tal detalhe é inimigo de uma abrangência global mais útil para a compreensão da sua actividade. A páginas tantas, o leitor fica um pouco perdido nos detalhes que o autor refere. Eu sei que se trata de uma autobiografia, mas que por vezes releva mais de um diário e, no que à vida pública respeita, de uma espécie de relatório, talvez deformação provocada por tudo o que Pedro Canavarro teve de escrever a propósito dos muitos lugares que desempenhou.

São relevantes os factos que menciona relativamente à sua vida privada, que deve ter sido muito rica, mas neste campo as evocações são escassas. Poderia o livro resultar mais estimulante se fosse dado um lugar de maior importância ao império das paixões e dos sentidos (Canavarro é um apaixonado do Japão) em detrimento das minúcias da vida pública.

Mas há que reconhecer uma certa coragem ao revelar alguns dos seus episódios homo-afectivos, embora o faça sendo já octogenário, dado que a nossa sociedade, apesar das aparências, é ainda profundamente conservadora. Recordo, a propósito, que o grande escritor Julien Green, que manteve um diário desde os seus 20 anos, e que morreu, em 1998, prestes a concluir os 98 anos, apenas permitiu a publicação em vida das partes expurgadas do seu Journal, e que as edições sucessivas, a cargo dos herdeiros, mantiveram essa mesma reserva. Só em finais do ano passado foi editada, pela primeira vez, a versão integral dos primeiros 20 anos desse diário, em que são mencionadas, com o pormenor adequado, todas as aventuras sexuais do escritor, nos mais inimagináveis lugares e com os mais improváveis parceiros, bem como as suas conversas com os grandes escritores franceses seus contemporâneos, maxime com André Gide, quase todos eles também homossexuais.

Terminada a leitura, colhi a impressão de que a narrativa se encontra mais bem estruturada no que consideraria a primeira metade do livro, o que contribui para sustentar a minha convicção que as páginas relativas aos primeiros tempos foram escritas em ocasião anterior ao resto do livro. Numa segunda metade, há por vezes alguma confusão cronológica e desnecessárias repetições, o que, todavia, não retira o valor da obra.


REGISTA-SE QUE PEDRO CANAVARRO UTILIZA A VERDADEIRA ORTOGRAFIA PORTUGUESA, NÃO SACRIFICANDO NO ALTAR DO INFAME ACORDO ORTOGRÁFICO 90, PERPETRADO ESPECIALMENTE POR MALACA CASTELEIRO E QUE CONTOU COM A CUMPLICIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E DO GOVERNO PARA A SUA PROMULGAÇÃO E RATIFICAÇÃO.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

O REINO UNIDO E A EUROPA




Depois de um atribulado processo, o Reino Unido deixou oficialmente, a partir de hoje, de fazer parte da União Europeia. Haverá um período de transição, cujo desenvolvimento é imprevisível, e, em seguida, uma separação mais ou menos absoluta, consoante a conclusão das negociações.

A finalização do Brexit terá certamente consequências na estrutura política do Reino Unido. A mais óbvia será a próxima independência da Escócia. Em 2014, teve lugar um referendo sobre a questão, vencendo os partidários da manutenção no Reino Unido por uma ligeira percentagem. Sendo os escoceses maioritariamente favoráveis à permanência na União Europeia, a primeira-ministra da Escócia avançou já com a ideia de um novo referendo que, para ser legal, deverá ser aprovado pelo governo de Londres. Boris Johnson manifestou-se contrário e sugeriu um prazo de duas gerações. Creio que serão dois anos e não duas gerações, dependendo da pressão que a Escócia exercer nesse sentido. Não penso que a Escócia pretenda mudar o regime, isto é, continuará a aceitar como chefe do Estado o monarca britânico, mas desejará ter um governo autónomo, uma vez que as competências do governo e do parlamento de Edimburgo são limitadas. Todavia, pode prevalecer a tentação republicana. O futuro o dirá.

A Irlanda do Norte (o Ulster) é outro problema, já que vai ficar numa situação híbrida face à União Europeia, decorrente das suas fronteiras serem ou marítimas ou terrestres junto ao Eire. Esbatidas que são as diferenças entre católicos e protestantes, afigura-se provável que o Ulster venha a ser integrado na República da Irlanda.

Quanto ao País de Gales, parece não surgirem por agora problemas sobre uma desejada autonomia.

Perfila-se também no horizonte, mas nada tendo a ver com o Brexit, uma outra alteração na monarquia britânica. Na sequência do desmembramento do Império Britânico, foi criada a figura jurídica de Domínio, que foi então aplicada ao Canadá, à Austrália, à Índia e à África do Sul. Os dois últimos territórios evoluíram rapidamente para repúblicas, ainda que no seio da Commonwealth. O Canadá e a Austrália, embora com governo próprio, dotado de plenos poderes, mantiveram o regime monárquico, sendo o soberano britânico representado por um governador-geral. Perspectiva-se, porém, a ideia de que, por morte da rainha Isabel II, os dois países, através dos instrumentos jurídicos adequados, proclamarão a república, não obstando a que permaneçam na Commonwealth.

Assim sendo, a Monarquia Britânica ficará praticamente reduzida à Inglaterra e País de Gales. Que novo nome adoptará, concretizando-se todas estas modificações? Reino Unido de Inglaterra e Gales não faz sentido porque Gales é um principado. Então, talvez só, como antigamente, e como sempre muita gente disse e continua a dizer: Inglaterra.