terça-feira, 4 de abril de 2017

OS MÁRTIRES DO CAIRO




Só recentemente tive ocasião de ler o livro do meu amigo Gilles Sebhan, La semaine des martyrs, publicado em Setembro passado. E, concluída a leitura, logo encomendei Égypte, les martyrs de la révolution, de Denis Dailleux (notável fotógrafo), que me escapara à data da publicação, e que retrata alguns dos jovens egípcios mortos nas manifestações anti-Mubarak de 2011, e cuja visitação (póstuma) constitui o tema do livro de Sebhan.

Autor de uma obra original no panorama da literatura francesa actual, Gilles Sebhan conta em La semaine des martyrs a sua presença ocasional no Egipto aquando das manifestações contra o regime de Mohamed Hosni Mubarak e da repressão de que foram alvo, nomeadamente da que teve lugar em 28 de Janeiro de 2011.

Importa relembrar que (e isto o livro não menciona), Mubarak nomeou como vice-presidente da República (13 dias antes de renunciar, o que aconteceu em 11 de Fevereiro) o general Omar Suleiman, antigo chefe dos serviços secretos. Após a renúncia do presidente, o marechal Mohamed Hussein Tantawi, chefe do Estado-Maior General, assumiu o poder, na qualidade de Comandante do Supremo Conselho das Forças Armadas, até à desastrada e desastrosa eleição do fundamentalista Mohamed Mursi como presidente da República, que haveria de ser derrubado pelo golpe de Estado do marechal Abdelfattah El Sisi, hoje presidente da República.

Não cabe na descrição de Gilles Sebhan a evolução da situação no Egipto, cujos jovens mais esclarecidos, entusiasmados com o "êxito" da "primavera árabe" na Tunísia (a Líbia ainda não estava destroçada), julgavam ser possível implantar no país um regime tipo "ocidental". Estas excitações pagam-se caras e os egípcios (que viviam em larga medida do rendimento do turismo, agora reduzido à expressão mínima) sofrem hoje uma ditadura mais severa do que a do tempo de Mubarak, até porque os sucessivos atentados protagonizados pelos fundamentalistas islâmicos (mais pelos adeptos de Daesh do que da Irmandade Muçulmana) obrigaram à adopção de medidas de segurança drásticas para garantir um módico de tranquilidade indispensável à vida comum.

Mas regressemos ao livro de Gilles Sebhan, O escritor francês decidira passar uns dias em casa do seu amigo, o fotógrafo Denis Dailleux, quando foi "apanhado" pela revolução. Antes das manifestações, ainda pôde visitar alguns lugares de referência (muito poucos para aqueles que eu conheço) no Cairo e arredores, entre eles a célebre pirâmide em degraus de Saqqara, mandada edificar pelo faraó Djoser. Para esta deslocação, Gilles e Denis utilizaram os serviços de um jovem taxista, Mohamed, que passou a conduzi-los diariamente aos sítios que pretendiam visitar. Há sempre um taxista egípcio, simpático e jovem, com o seu carro à espera de estrangeiros, nas ruas da Mãe de Todas as Cidades.

O autor do livro apaixonou-se pelo taxista, mas não chegaram a passar ao acto, salvo uma vez, e mesmo assim incompletamente e em condições precárias. Depois do célebre dia 28 de Janeiro, em que se verificaram milhares de mortos, o taxista não voltou a aparecer na habitual esquina da rua e não mais atendeu o telemóvel. Teria sido uma das vítimas da grandiosa manifestação ou ter-se-ia escondido cobardemente em casa, sem coragem para voltar a aparecer? Uma dúvida que consumirá Gilles Sebhan!

Meses depois, movido por irresistível impulso, o autor regressa ao Cairo, com o objectivo de entrevistar as famílias dos rapazes (e de algumas raparigas) mortos na confrontação (mas com o inconfessado objectivo de reencontrar Mohamed). Os mortos de Fevereiro foram elevados à categoria de mártires (shahid), as suas famílias ergueram em casa altares em sua memória, e o próprio Estado começou a pagar-lhes uma pensão de sangue.

Acompanhado por outro jovem, Mahmoud, a servir de intérprete, Sebhan percorre várias casas, ouve depoimentos, inteira-se da vida das famílias, perscruta as fotografias dos mortos, na esperança vã de encontrar Mohamed. Dailleux irá fotografando os locais, apropriando-se dos ângulos mais convenientes, e editará o livro que constituirá, avant a publicação, a ilustração de La semaine des martyrs.

É numa destas visitas que o acaso os leva à residência da família de Mohamed que, também ele, fora uma vítima da repressão de Fevereiro. 

Pelo meio, várias peripécias, não sei se reais se ficcionais, como a visita ao consultório do dentista Alaa Al-Aswany, autor do notável romance 'Imarat Yaqubian (O Edifício Yaqubian), na rua Qasr El-Nil, edifício que visitei algumas vezes e que referi neste blogue, aquando da publicação do comentário ao romance.

E há diversas considerações sobre a juventude egípcia, suas aspirações e frustrações, sobre a intimidade precária, sobre a sexualidade e os tabus sociais e religiosos, sobre a vida nos cafés, e sobre mais mil e uma coisas que, afinal, fazem o encanto de uma  maravilhosa cidade, que conta hoje (incluindo os subúrbios) com cerca de 20 milhões de habitantes.

 Ainda antes da publicação de La semaine des martyrs, de Gilles Sebhan, o fotógrafo Denis Dailleux editou, em 2014, Égypte, les martyrs de la révolution, álbum onde figuram as fotografias a que Sebhan se refere na sua obra.


É sobre esse livro que discorreremos agora.

Acompanhados de um amigo de Denis, Mahmoud Farag (a que nos referimos acima), e que morreu afogado no Mar Vermelho quando se encontrava em férias no Verão de 2012, Dailleux e Sebhan visitaram diversas famílias cujos filho(a)s foram mortos no fatídico dia 28 de Janeiro de 2011. Essas famílias ergueram-lhes em casa verdadeiros altares, destinados a honrar os seus mortos, desde então considerados mártires (shuhada'), ornamentados com as fotografias dos desaparecidos.


Foram fotografadas vinte famílias durante quatro meses, e em cada casa Dailleux captou três imagens, registando o edifício, os pais, os altares erigidos em honra dos mortos. São elas que constituem o álbum, onde é igualmente narrada a vida desses jovens, ceifada ou por participarem directamente nas manifestações ou por um mero mas frequente acaso de estar no lugar errado à hora errada.



A revolução contra Mubarak ("malhas que o Império tece") foi de alguma forma um equívoco da juventude urbana egípcia, mormente do Cairo e de Alexandria, embora se tivesse estendido a todo o país. Sofreram na carne os mais intrépidos e os mais incautos.



O Egipto vive hoje uma situação mais difícil do que aquela que se verificava no tempo de Mubarak, e as esperanças de rápida redenção são diminutas.  A  crise do Oriente, sobre a qual Henry Laurens acabou de publicar um livro, a que nos referiremos proximamente, parece não ter fim. Verdadeiramente, o Mundo Árabe, expressão recentemente inventada no seu contexto político (não me ocorre de momento quem a utilizou pela primeira vez), nunca existiu na acepção que todos nós insistimos hoje em lhe atribuir. Cada país árabe prossegue independentemente uma política própria (nem mesmo conseguem a unanimidade relativamente às relações com Israel), e a ´Umma, um sonho alimentado por Qaddafi, jamais passou de uma miragem. As alianças que, entre países árabes, se fizeram e desfizeram no último século, não têm conta.


E depois, são habilmente exploradas por aqueles a quem interessa a fitna, ressurgem as divisões no seio muçulmano: sunitas, xiitas, e outros ramos menos significativos. E também o velho, velhíssimo conflito entre árabes, turcos e persas (iranianos), apesar de todos sacrificarem no altar de Allah. Sem esqucer os cristãos do Oriente e outras minorias religiosas.


A guerra na Síria, um acontecimento que já ultrapassa (e é também consequência) a tragédia do Iraque, começa a configurar uma hecatombe semelhante à Segunda Guerra Mundial. Não é em vão que o Papa Francisco tem afirmado que a Terceira Guerra Mundial (embora disseminada) já começou.


Não nos permite o espaço (nem seria nossa intenção) a reprodução de todas as fotos da obra de Dailleux, mas entendemos publicar algumas, na esperança de que o futuro dispense sacrifícios inúteis, e para que o povo egípcio possa alcançar, num espírito de concórdia, a harmonia indispensável ao seu desenvolvimento e verdadeira independência.


Mahmoud Farag


"Vaste programme", como diria o general De Gaulle, mas, segundo um velho adágio popular, a esperança é a última coisa a morrer.


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