Foi publicada há pouco tempo a tradução francesa do romance da escritora grega Ersi Sotiropoulos, Ce qui reste de la nuit, tradução literal do original grego.
Nesta obra, a autora imagina três dias passados em Paris, em Junho de 1897, do célebre escritor grego de Alexandria, Constantin Cavafy, uma das mais notáveis figuras da literatura mundial do princípio do século passado, e sobre quem já escrevi diversas vezes neste blogue, nomeadamente aqui.
É sempre estimulante ler algo sobre Cavafy, mesmo quando a imaginação da autora parece não encaixar bem na realidade da personagem, mas ficção é sempre ficção.
O livro começa por descrever um encontro no Café de la Paix entre Constantin e seu irmão João (Iannis), onde são abordados por um compatriota, Mardaras, que serve graciosamente de secretário de um poeta simbolista grego então famoso, Jean Moréas, residente em Paris. Há uma visita a casa de Moréas (entretanto ausente), a convite de Mardaras, onde Cavafy tenta encontrar uns versos que lhe enviara anteriormente para a sua apreciação.
Constantin e Iannis (que também escreve e é dois anos mais velho do que o irmão) discutem poesia e Constantin emite uma frase de que logo se arrepende, mas que no caso vertente seria lapidar; «Il n'y a pas place pour deux poètes dans une famille.» (p. 19) Cavafy não pretendera superiorizar-se, porque até achava que o irmão o suplantaria. Ironias do destino!
Ao longo do livro, e de várias peripécias, nota-se uma permanente preocupação de Cavafy pela mãe (e pelas suas inquietações pela sorte dos filhos), que continuava a residir em Alexandria, e também pela condição financeira da família, que se agrava progressivamente, e a que não é alheia a deterioração da situação política e económica no Egipto.
São feitas referências a lugares icónicos de Paris (a autora insiste nessa vertente do conhecimento da cidade, aludindo a sítios bem conhecidos, como, por exemplo, o famoso Café Riche, fundado em 1785 e encerrado em 1916, para dar lugar a um banco - já então -, na esquina do boulevard des Italiens). Tinha este Café a característica de possuir duas entradas, uma para o comum dos mortais e outra para a nata da sociedade, políticos, príncipes e mesmo reis, que ali frequentemente se encontravam. O Café é mencionado em obras de autores famosos como Maupassant, Balzac ou Zola. De momento só me ocorre um Café Riche, o do Cairo, na rua Tala'at Harb, perto da praça At-Tahrir, que, felizmente, continua aberto. Mas não esqueçamos que o arquitecto das avenidas "novas" do Cairo, o barão Haussmann, foi o mesmo que rasgou as novas avenidas parisienses do Segundo Império.
Constantin Cavafy |
Não resisto a transcrever dois versos, citados pela autora, de um rascunho de Cavafy:
- La ville sans cesse te suivra. Toujours tu iras
- par les mêmes rues. Dans les mêmes quartiers tu vieilliras.
Não poderiam estar ausentes do romance as inclinações sexuais do poeta, que relembra com insistência aquele jovem aprendiz de ferreiro de Yeniköy (Constantinopla), com quem não chegou a falar, mas cujo olhar lhe ficou gravado para sempre.
Há depois a insistência de Mardaras de levar os irmãos a um local já fora de portas, e semi-secreto, L'Arche, onde se desenrolariam especiais orgias, aliás pouco ao gosto de Cavafy.
A obra está recheada de factos alheios ao tema, como, por exemplo, a referência a Léo Taxil, a quem a autora atribui a queda do Segundo Império, mais do que à derrota de 1870 ou à Comuna de Paris. Recorde-se que Taxil, profundamente anti-clerical, decidiu abraçar publicamente o catolicismo e renegar os seus escritos anteriores, tendo sido absolvido pelo papa Leão XIII, que o recebeu em audiência oficial (p. 187). Publicou mais de uma dúzia de livros anti-maçónicos.
O núcleo central desta narrativa, que parece pretender assemelhar-se ao estilo de Proust, são os pensamentos de Cavafy sobre ele mesmo e o mundo, mas isso não cabe neste texto e, mesmo no livro, resulta um pouco enfadonho, pelas construção literária e pelas repetições.
Jazigo de Cavafy, no Cemitério Grego-Ortodoxo de Alexandria |
Devo confessar que comprei o livro com entusiasmo (bastava tratar-se de Cavafy) mas cheguei ao fim com alguma desilusão, o que não significa que tenha sido uma leitura totalmente em vão. Porque sobre Cavafy, que se conta entre os maiores poetas universais do passado século, aprendemos sempre muita coisa.