sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A INFÂNCIA DE COETZEE




Acabou de ser publicada a edição portuguesa do último livro do escritor sul-africano J.M. Coetzee (n. 1940) A Infância de Jesus (The Childhood of Jesus, no original).

Autor de doze romances, Coetzee recebeu duas vezes o Booker Prize, em 1983 por Life & Times of Michael K e em 1999 por Disgrace. Em 2003 foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.

Este novo livro é uma fábula misteriosa, em que Coetzee brinca com o leitor (e até consegue irritá-lo), colocando a acção num tempo sem antes nem depois, num lugar cujas referências são mínimas (a população fala espanhol), jogando com uma intriga de contornos kafkianos. Um homem, Simón, uma criança, David e uma mulher, Inês, são as personagens principais. Simón e David vêm não se sabe donde; David não tem pais (Simón, faz as vezes de pai, ou tutor, ou tio); Inês, é de proveniência igualmente desconhecida. Por vontade de Simón, Inês torna-se mãe adoptiva de David (e acaba por convencer-se de que é a verdadeira mãe), ainda que gostasse de ter filhos biológicos (observe-se a sua atracção por Daga, um ser de contornos marginais).

Não existe no livro qualquer referência a Jesus. Mas tendo em conta os protagonistas, poderíamos assimilá-los a personagens bíblicas: Simón a José (pai adoptivo de Jesus), David (que não tem pais), a Jesus, Inês (mulher solteira e virgem, mãe de um filho adoptado), a Maria.

Sabemos pelos seus romances, pelas suas críticas literárias (e políticas), pela sua autobiografia, pelas suas entrevistas (raras), que Coetzee é um homem de sólida estrutura intelectual e com uma lúcida visão do mundo (a sua entrevista ao Nouvel Observateur, nº 2549 - 12/09/2013, em que afirma que «já não há guerras honrosas», a propósito dos drones, dos mísseis de longo alcance, dos bombardeamentos massivos a grande altura, é disso testemunho).

Por isso, este romance é susceptível de se enquadrar numa perspectiva de "infância" do próprio autor, ao discorrer sobre coisas simples e concretas: como educar um filho, como prescindir do sexo, como reflectir sobre o trabalho, como encontrar um sentido para a vida. A acção decorre num país estranho, onde tudo está regulado (e nada de material falta), mas onde não há vontade de mudar. Crítica de um socialismo real ou apologia do mesmo? Nem uma coisa nem outra, retirando Coetzee as lições e as contradições que se impõem.

Com uma sobriedade de estilo tornada sua imagem de marca, J.M. Coetzee, que coloca o livro sob o signo de Cervantes, não fornece ao leitor qualquer chave de interpretação deixando-o, no fim, perplexo e frustrado.

Também autor de Waiting for the Barbarians, de The Master of Petersburg, de Disgrace e de Diary of a Bad Year, alguns dos seus melhores livros, Coetzee situa-se no registo da "angústia cómica feroz", como ele definiu a arte do seu mestre reivindicado, Samuel Beckett.

1 comentário:

Numa de Letra disse...

Gostei muito!:

http://numadeletra.com/a-infancia-de-jesus-de-j-m-coetzee-44632