sábado, 28 de novembro de 2009
UMA V INTERNACIONAL ?
Segundo as notícias da semana passada, partidos de esquerda de 45 países, reunidos em Caracas, até Abril do próximo ano, pretendem constituir uma nova associação internacional que reúna os partidos socialistas a nível mundial. Presume-se que os proponentes se queiram referir ao que entendem por verdadeiros partidos socialistas. Ignoro quais os partidos representados nesse conclave mas julgo que não inclua os partidos que, reclamando-se do socialismo, ainda hoje integram, melhor ou pior, as internacionais que subsistem. Aguardemos, então, para ver os resultados dessa reunião. Depois de Marx, de Engels, de Lenine, de Trotsky, é a vez de Chávez.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
AO QUE ISTO CHEGOU
Assim, fica no ar a pergunta: que fazer? Sem partidos políticos não há democracia. Com partidos políticos, nomeadamente com estes partidos políticos, a democracia é o que se vê! Um só partido político resulta num governo dito ditatorial ou, no mínimo, autoritário.
É claro que o mal não está nos sistemas mas nos homens que os servem, ou se servem deles. A cultura de novo-riquismo que se instalou no Ocidente e se estende a todo o mundo fez apodrecer os valores morais que, durante séculos, constituíram a essência da nossa civilização.
Ainda me recordo de alguns homens que se suicidaram por não poderem honrar uma dívida. Hoje, o mais normal é matarem os credores. E dizendo isto está tudo dito.
EUGÈNE IONESCO
Nasceu a 26 de Novembro de 1909, faz hoje 100 anos, o dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco. Slatina, na Valáquia, foi a sua terra natal e a França, o seu país de adopção. Foi baptizado Ionescu mas o mundo conhece-o como Ionesco.
Não nos permite o tempo (ou a falta dele) mais do que um breve apontamento biográfico para evocação desta data. Em 1911, a família instalou-se em Paris mas, em 1916, o pai regressou a Bucareste, não voltando a dar notícias. Em 1922, Eugène partiu com a mãe e a irmã para a capital romena, onde encontraram o pai que, sem prevenir a mulher, obtivera o divórcio e voltara a casar e obtivera também a guarda dos filhos. Em 1926, Eugène abandonou o domicílio paterno indo viver para casa de uma tia. Em 1929, após os estudos secundários, ingressa na universidade de Bucareste a fim de se licenciar em francês e começa a sua actividade literária, colaborando em diversas revistas. Em 1936, é professor de francês em várias escolas e, em 1939, volta a Paris para preparar a sua tese “Le Péché et la mort dans la poésie française depuis Baudelaire”. A guerra obriga-o a regressar à Roménia em 1940, ingressando como professor no liceu São Sava. Em 1942, regressa a França, desta vez definitivamente, instalando-se primeiro em Marselha e, em 1945, em Paris.
Em 1950, inicia a sua carreira de dramaturgo com La Cantatrice chauve. Ionesco será acima de tudo um escritor de teatro, embora tenha cultivado também os outros géneros literários. Em 1951, surge La Leçon e, em 1952, Les Chaises. Estas três peças entraram no repertório teatral mundial e aí permanecem. Aliás, as duas primeiras subiram ao palco do Théâtre de la Huchette, em Paris, em 1957, continuando até hoje em cena. Ionesco escreverá cerca de 30 peças, de que destacaremos ainda Rhinocéros (1960), Le Roi se meurt (1962) e Macbett (1972). Em 1970 foi eleito para a Academia Francesa, tendo recebido ao longo da vida numerosos prémios e distinções, entre as quais a Legião de Honra, em 1984.
Ionesco, que conheceu em Bucareste os seus compatriotas Mircea Eliade e Emil Cioran, com quem manteve uma amizade até ao fim da vida, é um dos mais famosos autores do chamado teatro do absurdo. Morreu em Paris, em 28 de Março de 1994, sendo sepultado no cemitério de Montparnasse.
A sua primeira biografia, da autoria de Gilles Plazy, foi editada em 1994. Alexandra Laignel-Lavastine publicou em 2002 um bem documentado volume de 550 páginas intitulado Cioran, Eliade, Ionesco: L’oubli du fascisme, sobre as ideias políticas dos três grandes escritores. Nele é referida a permanência de Mircea Eliade em Portugal, como adido de imprensa, de 1940 a 1945, e a sua admiração por Salazar, sobre o qual publicou um livro em Bucareste em 1942: Salazar si Revolutia in Portugalia, Editura Gorjan (Salazar e a Revolução em Portugal). E, em 1943, a Livraria Clássica Editora publicou o seu ensaio Os Romenos, Latinos do Oriente.
Não sendo propriamente um adepto do marechal Antonescu e da Garde de Fer, Ionesco jamais revelou as “ligações perigosas” dos seus amigos Cioran e Eliade, num fraternal pacto de silêncio. Na verdade, todos mantiveram as melhores relações com os intelectuais franceses e europeus e americanos, muitos dos quais certamente não ignoravam o seu pensamento, que verdadeiramente nunca enjeitaram até morrer. Sendo um itinerário da vida dos três homens e das suas convicções e reconversões, poderá também inferir-se do livro de Alexandra Laignel-Lavastine que, como afirmou Ortega y Gasset, o homem nunca é ele sozinho mas sempre ele e a sua circunstância.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
UNIÃO EUROPEIA
Finalmente, a União Europeia vai ter um presidente não rotativo: Herman van Rompuy, até agora primeiro-ministro belga. Foi eleito pelos seus pares na expectativa de não perturbar o funcionamento (ou não funcionamento) da União nos moldes que satisfaçam os principais países que a constituem. Figura praticamente desconhecida na cena internacional, escolhido, ao que parece por pressão da Alemanha, espera-se dele um mandato apagado, um homem encarregado de gerir o dia-a-dia mais do que um político capaz de assegurar a relação da Europa nos seus contactos com as grandes (ou pequenas) potências.
A eleição de van Rompuy teve pelo menos um mérito: impedir que fosse designado para o lugar um candidato sinistro, Tony Blair, criminoso de guerra e talvez mais, que se posicionara na grelha de partida. Por outro lado, sempre seria desejo dos maiores países da União que o escolhido viesse de um pequeno país, para não perturbar os equilíbrios indispensáveis nesta nau que é a "Europa", navegando em mar de procela.
A escolha de Catherine Ashton para suceder a Javier Solana no novo cargo de chefe da política externa é mais surpreendente; impunham as regras do politicamente correcto que o cargo fosse para uma mulher (a política das quotas) mas não se compreende a escolha de uma britânica e ainda mais desconhecida do que o próprio van Rompuy. Os ingleses, que pretendiam Blair na presidência, forçaram a obtenção do "segundo" cargo. Mas o Reino Unido não faz verdadeiramente parte da Europa: nas grandes coisas (como toda a sua política) ou em coisas menores: não aderiu ao euro, não aderiu a Schengen, conduz-se pela esquerda, usa graus Farenheit e milhas, etc., etc. Um país como este não devia fazer parte da União Europeia, como aliás pensava o general De Gaulle.
Aguardemos como as coisas se vão passar e se a figura apagada do novo presidente do Conselho Europeu não nos reservará algumas surpresas. Realmente não acredito mas palavra de que gostava!
REGRESSANDO A AUDEN
Um trecho do 1º Acto da ópera de Stravinsky, The Rake's Progress, com libretto de Auden e Kallmann. Direcção de Sylvain Cambreling, encenação de Peter Mussbach e interpretação de Dawn Upshaw. Em 10 de Novembro de 2007.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
BRITTEN E AUDEN
Está em cena no National Theatre, de Londres, a peça recém-publicada de Alan Bennett The Habit of Art, que encena um encontro imaginário entre Benjamin Britten (1913-1976), o maior compositor inglês do século XX, e possivelmente de toda a história da música britânica, e Wystan H. Auden (1907-1973), um dos maiores poetas ingleses da época.
O espectáculo, que se manterá na primeira sala de teatro londrina até Março próximo, evoca o hipotético reencontro, no início dos anos 70, do compositor e do poeta que, tendo sido grandes amigos, se haviam desentendido depois da sua última colaboração, a opereta para estudantes Paul Bunyan, estreada na Universidade de Columbia em 1941, que Auden escreveu e Britten musicou.
A colaboração entre ambos iniciou-se em 1935 com o documentário Coal Face, para o qual Auden escreveu o guião e Britten a música e prosseguiu nos anos seguintes. O compositor testemunhava a maior admiração por Auden, seis anos mais velho e que pertencia a um círculo de escritores situados à esquerda, e na sua maioria homossexuais, onde se contavam os famosos Stephen Spender e Christopher Isherwood.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, Britten viajou para os Estados Unidos com aquele que já era e seria até ao fim o companheiro da sua vida, o famoso tenor Peter Pears, e onde já se encontravam Auden e outros intelectuais e artistas ingleses. Também em Nova Iorque se encontrava a escritora e actriz Erika Mann, filha de Thomas Mann, que se divorciara do célebre actor alemão Gustaf Gründgens e casara por conveniência (era lésbica) em 1935 com Auden, para obter a nacionalidade britânica. Entretanto Auden conheceu o poeta norte-americano Chester Kallman, com quem passou a viver e a manter colaboração literária. Ambos escreveram o libretto da extraordinária ópera de Stravinsky, The Rake’s Progress. Por seu lado, Britten comporia notáveis obras musicais como War Requiem e as óperas Peter Grimes, The Turn of the Screw, sobre a novela de Henry James, Billy Budd, sobre a novela de Herman Melville e Death in Venice, sobre a novela de Thomas Mann.
Regressados a Inglaterra, Auden nunca se reconciliou com Britten, a quem acusava de levar uma vida demasiadamente pacata comparada com os seus ideais revolucionários e com a sua forma de encarar a sexualidade. Diria mesmo que foi o único amigo com quem se zangou para sempre.
Esta peça de Bennett, encenada por Nicholas Hytner, procura salientar que tudo o que ligava estes dois vultos maiores da cultura britânica, e universal, do século XX – o teatro, a poesia, a música – ultrapassava largamente as zangas e os ressentimentos que os pudessem dividir. Afinal, fora pela cultura que haviam estabelecido a sua amizade, fora por ela que colaboraram durante largos anos, fora ela que os impusera à admiração do mundo.
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
ROLAND BARTHES
Se fosse vivo, Roland Barthes completaria hoje 94 anos. Nascido em 12 de Novembro de 1915, em Cherbourg, foi um dos intelectuais que mais profundamente marcou a vida cultural francesa de meados do século passado. Integrado inicialmente na escola estruturalista, percorreu uma trajectória diversificada que incluiria a semiologia, o existencialismo, o marxismo, o pós-estruturalismo, a teoria literária e social, a fotografia, e outros saberes, acabando os seus dias como professor do Collège de France.
Aluno exemplar da Sorbonne, a sua vida académica foi perturbada pela tuberculose que o levou a vários internamentos em sanatórios e que viria a ser a verdadeira causa da sua morte.
Professor em diversas universidades e conferencista apreciado em todo o mundo, foi investigador do Centre National de la Recherche Scientifique e professor da École Pratique des Hautes Études. Além da França, ensinou em Bucareste, Alexandria, Baltimore, Rabat, Tunis, etc. A sua predilecção pelo Norte de África, a exemplo de outros grandes escritores franceses como Gide, Montherlant, Genet, Foucault, manifesta-se, excepcionalmente, num pequeno opúsculo, Incidents, pequenas notas sobre os rapazes de Marrocos. Mas, ao contrário de muitos dos seus pares, Barthes foi sempre especialmente reservado em relação à sua vida privada.
Da obra, hoje reunida nos cinco volumes das Oeuvres Complètes, sobressaem Mythologies, Le degré zero de l’écriture, Fragments d’un discours amoureux, Le plaisir du texte. Provocou polémica a recente publicação (póstuma) do Journal de deuil, que Barthes, que professava verdadeira adoração pela mãe, manteve durante dois anos, desde o dia seguinte à morte desta até quase à sua própria morte. Neste diário, o escritor evoca as recordações e expressa o seu desgosto pelo falecimento daquela com quem viveu a vida inteira, desgosto de que, verdadeiramente, nunca se recompôs.
Ainda sobre o fascínio de Barthes pelo mundo árabe, aquilo a que Frédéric Mitterrand, actual ministro da Cultura francês chama, no seu livro La mauvaise vie, “la tentation arabe”, escreve Louis-Jean Calvet na biografia que lhe consagrou: «Il y a, entre Tunis et La Marsa, un petit train très populaire, le TGM (Tunis-La Goulette-Marsa), et Rebeyrol se souvient que Barthes ne voulait jamais prendre la voiture de l’ambassadeur, préférant ce transport en commun dans lequel il pouvait faire des rencontres.» (Roland Barthes, p. 273). Estávamos em 1978 e Barthes encontrava-se hospedado em casa de seu amigo e colega desde o liceu, Philippe Rebeyrol, então embaixador de França na Tunísia. A residência do embaixador francês situa-se em La Marsa, que está em relação a Tunis um pouco como Cascais está em relação a Lisboa. Aliás, o TGM é uma espécie de comboio da linha de Cascais em mais pequeno. Curiosamente, Foucault, quando leccionou durante dois anos na Universidade de Tunis, habitando Sidi-Bou-Saïd (a meio caminho entre La Marsa e Tunis) utilizava também o TGM, antes de ter comprado um carro descapotável.
Em 25 de Fevereiro de 1980, Barthes aceitou um convite de Jack Lang para almoçar com François Mitterrand (que seria eleito presidente da República no ano seguinte) e outras personalidades. Era costume de Lang organizar para Mitterrand, que apreciava os contactos com as gentes da cultura, este tipo de almoços. O encontro teve lugar no Marais, rua des Blancs-Manteaux, em casa de Philippe Serre, antigo deputado da Frente Popular. Além de Mitterrand e Lang estavam presentes Jacques Berque, Danièle Delorme, Pierre Henry et Rolf Liebermann. No fim do almoço, Barthes decidiu andar um pouco a pé. Seguindo pela rua des Écoles, por altura do nº 44, próximo do Collège de France, decidiu atravessá-la, tendo sido colhido por uma camioneta. Sustenta um amigo meu, hipótese plausível, que Barthes, tendo visto no outro lado da rua alguém que lhe despertou a atenção, resolveu inadvertidamente atravessá-la, não reparando na camioneta que se aproximava. Conduzido pelo SAMU ao Hospital de La Salpêtrière, sangrando do nariz e sem papéis de identificação, só muitas horas depois a notícia foi divulgada.
No dia 26, o comunicado do hospital era tranquilizador. Barthes continuava em observação mas o seu estado de saúde não era considerado preocupante. Rapidamente, amigos, intelectuais, alunos, afluem à Salpêtrière onde se encontrava já o meio-irmão de Barthes, Michel Salzedo. Philippe Sollers, Julia Kristeva, François Wahl e Michel organizam as visitas. A Michel Foucault, Barthes, muito abatido, repete: «quelle bêtise». Philippe Rebeyrol, que deixara o posto na Tunísia para ser nomeado embaixador em Atenas e por isso se encontrava em Paris visita-o várias vezes. Passam também assiduamente pelo hospital Éric Marty, Taïeb Baccouche, André Techiné, Algirdas Greimas, Italo Calvino, Bernard Dort, e tantos outros. Todavia o estado de saúde deteriora-se. O facto de estar entubado impede-o de falar e os médicos decidem fazer-lhe uma traqueotomia. Como não haviam sido solicitados exames anteriores, ignoravam inicialmente os clínicos a história de tuberculose de Barthes. A operação acaba por mergulhar o escritor em estado de completa prostração e há como uma rejeição psicológica de continuar a viver. O seu passado pulmonar havia desencadeado uma insuficiência respiratória grave. Jamais recomposto do desgosto provocado pela morte da mãe e com um “buraco na garganta”, Barthes desiste e morre a 26 de Março, às 13.40 h. Segundo o médico legista “não foi o acidente a causa da morte mas favoreceu a eclosão de complicações pulmonares numa pessoa particularmente diminuída por um estado de insuficiência respiratória crónica.”
Será sepultado em Urt, perto de Bayonne, aldeia onde a mãe comprara uma casa em 1961 e onde, desde então, ambos passavam todos os anos as férias.
Cumprindo as disposições de Barthes, de que nenhum inédito deveria ser publicado, François Wahl, como executor testamentário, opôs-se sempre a qualquer publicação póstuma sem sua autorização, especialmente de carácter biográfico. Mas a sua determinação não foi totalmente coroada de êxito, até porque foram editados alguns romances “à clés”, como Les Samouraïs, de Julia Kristeva, onde o escritor aparece sob o nome de Armand Bréhal, catálogos de exposições e outras obras que revelam diversos aspectos da vida e personalidade de Roland Barthes.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
OS MUROS
Comemora-se hoje o 20º aniversário da queda do Muro de Berlim. Construção aberrante, como todas as que impedem o convívio humano, o Muro de Berlim, construído em 1961, separou os cidadãos da capital germânica (a velha capital da Prússia, do Império, da República e do III Reich, cujo símbolo maior é a Porta de Brandenburg), durante quase 30 anos.
Muito se tem escrito sobre a reunificação de Berlim e a consequente reunificação da Alemanha. Não é este nem o momento nem o lugar para considerações sobejamente conhecidas. Apenas uma breve nota para evocar a satisfação com que a destruição dessa barreira foi acolhida, pelos alemães, em primeiro lugar, e em geral pela Europa e o Mundo. E também para acentuar que ainda hoje persiste uma outra barreira (invisível) mental e económica, entre os cidadãos de Berlim ex-Oriental e de Berlim ex-Ocidental e entre os cidadãos da ex-RDA e da ex-RFA.
A precipitação com que ocorreu a reunificação - e talvez não pudesse ter sido de outra maneira - não preveniu o desequilíbrio social que veio a verificar-se. Ainda em Abril passado, falando em Berlim com vários alemães, me apercebi que o espírito de solidariedade que existia na RDA foi substituído abruptamente pelo espírito de competitividade selvagem que se verificava na RFA e que se está a alargar a toda a Alemanha. Que no que foi Berlim-Leste e a RDA os salários são substancialmente mais baixos que no lado ocidental. Que os serviços gratuitos (ou quase) existentes a Leste, como a saúde, a educação, os transportes, etc., estão agora nivelados em toda a Alemanha. Aliás, como se está registando na União Europeia: para preços iguais, salários diferentes.
Ganhou-se em liberdade formal o que se perdeu em igualdade real e nem sequer se aproveitou em fraternidade aparente. O regime comunista era politicamente repressivo, sem dúvida; o regime capitalista é economicamente repressivo. Sendo ambos socialmente repressivos. Existe hoje, indiscutivelmente, uma efectiva desilusão no espírito dos alemães quanto à bondade da reunificação. Há sempre um preço a pagar, e a História não deixará de o registar.
Mas subsistem ainda outros muros pelo mundo. Citarei, apenas , dois: o Muro que divide Nicósia, a capital do Chipre, e o Muro com que os israelitas cercaram a Cisjordânia.
O primeiro, consequência da disputa entre gregos e turcos pela soberania da ilha, poderia ter sido desmantelado e reunificada a ilha dividida entre a República do Norte (turca) e a República do Sul (grega), mesmo sob a forma de federação, se a União Europeia tivesse exigido a conclusão de negociações como condição para a admissão de Chipre (grego) na União. Não o fez, cedendo à chantagem da Grécia, que ameaçava opor-se ao alargamento comunitário a outros países, e o problema persiste.
O outro Muro, muro da vergonha, é o que os israelitas construíram à volta da Cisjordânia, na tentativa de consumação da sua política de apartheid em relação aos palestinianos. Nada do que se possa escrever, aqui e agora, é desconhecido dos leitores. Dir-se-á tão só que a prossecução dessa política apenas contribuirá para que no dia em que a segregação termine (como aconteceu na África do Sul) as feridas abertas sejam incomensuravelmente maiores.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
OS CASAMENTOS SAME-SEX
Reacendeu-se a polémica a propósito da inclusão no Programa de Governo da consignação do instituto jurídico do casamento de pessoas do mesmo sexo.
Convém acentuar desde já que o casamento de pessoas do mesmo sexo não implica necessariamente que os cônjuges sejam homossexuais, embora sejam estes quem, naturalmente, mais reivindica o novo ordenamento jurídico proposto.
Recorde-se, ainda, que os casamentos same-sex existem desde há anos em muitos países da Europa, e não só, e que a sua adopção em nada altera a ordem pública ou o regular funcionamento das instituições.
A questão da homossexualidade, tão antiga quanto o próprio homem, tem suscitado as mais diversas reacções ao longo da História. É costume, em abono da “causa”, invocar-se e evocar-se a benevolência com que as práticas homossexuais eram acolhidas na Antiga Grécia. Importa, porém, acrescentar que tais práticas, na sua essência, eram razoavelmente diferentes das que se foram impondo ao longo dos séculos. Aceitava-se, e até era louvável, na velha Atenas, que os homens tivessem um jovem (a partir dos 12 ou 13 anos) como amante, a quem iniciavam não só nas práticas sexuais, mas também nas artes que mais tarde os romanos designaram por trivium e quadrivium e que constituíam a formação educativa básica da época. Isto é, congregavam-se a pedagogia e a pederastia, com vista a uma completa educação dos efebos. O que já era condenável, ou pelo menos censurável, em Atenas, era o relacionamento sexual entre adultos (salvo se o adulto fosse um escravo e tivesse um comportamento passivo), ainda que, mesmo assim, essas relações fossem largamente praticadas.
Quando o efebo (eromenos) atingia a idade adulta (geralmente quando lhe começava a nascer a barba), era largado pelo seu amante (erastes) que o substituía por um companheiro mais jovem. Por sua vez, o ex-eromenos, agora já considerado adulto (por volta dos 20 anos) tratava de conquistar um eromenos para si.
Esta velha ordem social grega (existiam algumas diferenças de pormenor entre Atenas e as outras cidades-estado), de que tivemos conhecimento através de textos, esculturas, pinturas, etc., foi depois adoptada por Roma (com adaptações às circunstâncias) e alargou-se mais tarde a todo o Império.
Da Grécia nos chegaram os testemunhos de Platão no Banquete e, posteriormente, de Estratão de Sardes, nos Epigramas. De Roma nos falaram Petrónio, no Satyricon e o Pseudo-Luciano nos Amores. Não foi, todavia, a prática da homossexualidade na Antiguidade um exclusivo da Grécia e de Roma Clássicas. Ela foi comum às outras civilizações e encontra-se convenientemente descrita no livro A Sexualidade no Mundo Antigo, que recolheu as comunicações sobre o tema apresentadas no colóquio homónimo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 24, 25 e 26 de Outubro de 2007, pelos mais credenciados professores desta Universidade e da Universidade de Coimbra.
Depois, da Idade Média aos nossos dias, nunca cessaram as práticas e a respectiva descrição literária, jurídica, médica ou religiosa, e também as perseguições aos “prevaricadores” da ordem moral judaico-cristã-islâmica, com algumas épocas de maior tolerância, como foi o caso do Renascimento.
Porquê este arrazoado a propósito do casamento de pessoas do mesmo sexo? Em primeiro lugar, porque se recorda sempre a Grécia Clássica quando se fala de homossexualidade. E para bem se compreender (e ver) o que ela então foi importa consultar a obra ilustrada, ainda hoje considerada como referência fundamental: Greek Homosexuality, de Sir Kenneth Dover, presidente do Corpus Christi College, de Oxford, presidente da Academia Britânica e Chanceler da St Andrews University. Em segundo lugar, porque, como se disse, o que na época constituía motivo de censura era o relacionamento sexual entre adultos entre si e não o relacionamento entre adultos e adolescentes (em que obviamente não se incluíam as crianças). Esta precisão é tanto mais necessária dado que hoje a campanha contra a chamada pedofilia constitui uma paranóia quase universal, amalgamando os mais diversos escalões etários. Instigada pelas ligas de “bons costumes”, com o incentivo das seitas evangélicas norte-americanas, nomeadamente dos “born-again” (a que pertence o ex-presidente Bush), permitiu exacerbar o puritanismo (hipócrita) dos americanos e teve como primeiro alvo os padres e bispos da Igreja Católica. Aliás, tudo isto está inserido numa complicada estratégia (difícil de resumir em pouco espaço) que tem como objectivo último o apoio incondicional ao Estado de Israel, que deverá ocupar, contra os palestinianos, todas as terras biblicamente consideradas como o Grande Israel para depois se operar a conversão dos judeus à fé cristã e para que se possam finalmente cumprir as profecias e concretizar-se a segunda e última vinda de Jesus Cristo à Terra.
Para uma melhor compreensão do assunto, e porque o termo homossexual foi usado pela primeira vez por Karl-Maria Kertbeny apenas em 1869 (anonimamente) e em 1880 (publicamente), e só encontrou ampla divulgação em 1886, pela mão de Richard von Krafft-Ebing, deve ler-se também o livro do professor Simon Goldhill, do King’s College, de Cambridge, Love, Sex & Tragedy, que se encontra traduzido em português. A propósito da publicação da edição portuguesa, escreveu Maria Filomena Mónica na recensão crítica que fez no PÚBLICO, em 24 de Junho de 2006, referindo-se à imagem que apresento no início deste post: «De tal forma a obra me impressionou que, mal a terminei, fui até ao Ashmolean Museum, em Oxford, a fim de ver, com os meus olhos, o vaso grego que figura na ilustração nº 17, onde se retratam os preparativos para o que os gregos chamavam “diomerizein”, ou seja, o acto sexual, entre as coxas, praticado entre um homem e um rapazinho. Lá estava, na vitrine, o adolescente nu, diante do adulto com barba, semicoberto por uma capa drapeada, o qual acariciava o pénis do menino. Nada denuncia violência, maldade ou imposição. Pelo contrário, ambos parecem deliciados. O rapazinho tem um braço por cima dos ombros do homem e olha-o sem pudor. Aparentemente, o desejo sexual pleno só é atingido pelo adulto. Numa época em que a obsessão com a pedofilia atingiu as raias do absurdo, a imagem é chocante, mas não o era para o Mundo Antigo, que, note-se, não admitia a penetração nestes casos.»
Dadas as características que o relacionamento homossexual desenvolveu ao longo dos séculos, não julgo indispensável para a felicidade da humanidade que esta versão do casamento seja consagrada em lei. Numa época em que se assiste a um aumento exponencial dos divórcios dos casamentos heterossexuais, até poderá parecer uma ironia a reivindicação agora pretendida. O que importa consagrar será a plenitude dos direitos (diversos) de todos aqueles (homos ou heteros) que vivem, realmente, em união de facto.
Mas concedo, para não ser considerado demasiado pessimista, que a introdução deste instituto na nossa ordem jurídica possa contribuir para um progressivo reconhecimento de uma realidade (ainda insuficientemente estudada) que existe desde o princípio dos tempos, com diversos graus de aceitação no decorrer da História.