quinta-feira, 28 de maio de 2020

A PESTE DE LONDRES




Em 1722, Daniel Defoe (1660-1731) publicou A Journal of the Plague Year, de que existe uma tradução portuguesa, da autoria de João Gaspar Simões, com o título Diário da Peste de Londres, editada em 1964.

Escritor, jornalista, panfletário, mas também comerciante empenhado nos seus negócios, Daniel Defoe (aliás Daniel Foe, segundo registo de baptismo) foi autor de numerosas obras e inúmeros panfletos, mas ficou famoso pelo seu livro Robinson Crusoe (1719), pioneiro do moderno romance europeu.

No Diário da Peste de Londres, o autor conta, como testemunha presencial, a situação vivida em Londres, em 1665, aquando da grande peste que assolou a cidade. É evidente que Defoe, que tinha cinco anos na alura dessa epidemia, não poderia relatar os factos tal como descritos. Todavia, a obra é assinada por um misterioso H.F., o que nos remete para a hipótese de se tratar de Henry Foe, tio do autor, correeiro em Wood Street. Assim, muito provavelmente, Daniel Defoe terá baseado a sua narrativa num diário escrito pelo tio, contemporâneo dos acontecimentos.

A publicação da obra em 1722 deveu-se talvez à nova ameaça do continente europeu em consequência da Grande Peste de Marselha (1721), importada do Médio Oriente e trazida por passageiros e tripulação de um navio que aportou naquela cidade do sul de França.

Foi em Setembro de 1664 que começou a ouvir-se falar em Londres de que a peste voltara a aparecer na Holanda, e os primeiros óbitos em Inglaterra verificaram-se em Dezembro de 1664. As várias paróquias londrinas foram sucessivamente contaminadas. Com o pânico que se apoderou das populações, muita gente, a que pôde, abandonou a cidade, deixando os seus haveres à guarda de terceiros. A Corte retirou-se para Oxford e parece que nenhum membro da família real foi contaminado. Os pregadores proferiam sermões em que denunciavam um castigo divino, as igrejas enchiam-se de fiéis, o que só facilitava a propagação do mal, e de toda a parte surgiam bruxos, charlatães e adivinhos, vendendo pílulas e poções, feitiços e amuletos, praticando exorcismos. «Eram frequentes as proclamações deste jaez: "Pílulas preventivas infalíveis contra a peste", "Preservativos absolutamente garantidos contra o mal", "Cordiais soberanos contra a corrupção no ar", "Poção incomparável contra a peste, pela primeira vez descoberta", "Remédio universal para a peste", "O único verdadeiro elixir da peste", "O antídoto real para todas as infecções conhecidas"» (pp. 53,54). E havia cartazes pela cidade com o domicílio de pessoas capazes de curar o mal. Abundavam os aldrabões que a todos ludibriavam com as suas promessas, propondo-se afastá-lo com sinais da cruz, signos do zodíaco, palavras ou figuras, especialmente a palavra ABRACADABRA, em triângulo ou em pirâmide. Os espectáculos públicos foram naturalmente proibidos e o Lord-Mayor publicou Ordenações relativas ao comportamento da população durante a epidemia e nomeou inspectores encarregados de verificar o cumprimento das determinações. Teriam de verificar quais as casas contaminadas, impedir que os doentes abandonassem os domicílios, cuidar dos doentes e dos pobres, providenciar ao enterramento dos mortos, etc. Procedeu-se à limpeza das ruas e interditados ajuntamentos, banquetes e lojas de bebidas. O autor procede a uma descrição minuciosa da vida quotidiana da cidade e do alastrar imparável da peste de bairro para bairro. O facto de se terem avariado os carros de combate aos fogos deixou que se propagassem numerosos incêndios.

Verificou-se uma grande negligência dos habitantes que, advertidos da chegada da calamidade, não tomaram as providências necessárias, inclusive no abastecimento de bens essenciais de alimentação, o que lhes permitiria terem permanecido nas suas casas evitando a contaminação. Como muita gente ignorava que já tinha contraído a peste, só o sabendo quando esta atacava os órgãos vitais, as pessoas morriam subitamente em qualquer sítio. Os cadáveres amontoavam-se nas ruas ou nos vãos de portas onde se sentavam. O aprovisionamento dos mercados tornou-se difícil e os vendedores que vinham do campo deviam transaccionar rapidamente os seus produtos e regressar a casa.

A peste provocava graves distúrbios mentais. Havia quem, em sinal de contrição, clamasse publicamente na rua os seus mais graves pecados, quem se suicidasse em casa e quem, já contaminado, se atirasse vivo para as valas que não paravam de se abrir. Na cidade exisitia apenas um hospital, mas a peste era mortal e não havia remédio que valesse.

Os vigilantes que tomavam conta dos doentes muitas vezes apressavam-lhes a morte para ficarem com os bens e os roubos eram praticados em larga escala, especialmente em casas onde toda a família já morrera, não existindo assim qualquer ocupante.

Segundo o autor, a peste chegou a dizimar 4.000 pessoas por semana. Os funerais religiosos deixaram de ter lugar e os cadáveres eram arrastados para o cemitério e lançados em valas comuns. Como normalmente acontece, os pobres foram os mais atingidos, e, no entanto, «Temos de reconhecer que se a peste grassou sobretudo entre os pobres, estes é que se mostraram mais ousados e destemidos, e foram eles que prosseguiram nas suas tarefas com uma coragem animal; que assim tenho de lhe chamar, já que não vejo fundamentos para isso na religião ou na prudência. Quase dispensavam precauções, lançando-se a tudo que lhes pudesse proporcionar trabalho, fossem quais fossem os riscos; tratavam dos doentes, vigiavam as casas fechadas, transportavam os contagiados ao hospital e, coisa bem pior, retiravam os cadáveres das casas para os levar para a cova.» (p. 133).

O Lord-mayor adoptou disposições para distribuir somas destinadas aos mais necessitados e também para proteger as classes que na ocorrência se viram mergulhadas na miséria: os mestres operários das manufacturas (vestuário, adornos, calçado, luvas, chapéus, marceneiros, estofadores, etc,); fragateiros, carregadores e profissões similares, já que poucos navios subiam o rio; os empregados da construção civil (pedreiros, carpinteiros, pintores, vidraceiros, ferreiros); os trabalhadores ligados à construção e abastecimento de navios; os que foram despedidos ou abandonados porque as famílias reduziram o seu trem de vida ou fugiram da cidade (lacaios, criados, caixeiros, marçanos, escriturários, criadas de servir). Também as pessoas de boa vontade contribuíram com as suas dádivas para minorar o sofrimento dos que perderam o seu pão quotidiano. Isto tornou possível atenuar a miséria na cidade e impedir que houvesse desordens, saques e assaltos.

Os boletins semanais de saúde raramente são rigorosos, e nas circunstâncias da peste de Londres terão sido muito mais falíveis, mas o autor apresenta, com as devidas reservas, os seguintes dados, relativos à mortalidade no período decorrente entre 8 de Agosto e 10 de Outubro do fatídico ano: 59.970 mortos, dos quais 49.705 devidos à peste, isto é, 83%. O número total de óbitos registados, em consequência da peste, é estimado em 68.590, mas o autor é de opinião que deverão ter morrido mais de 100.000 pessoas.

«Suponho que toda a gente ouviu falar de Salomon Eagle, esse entusiasta (nome dado aos que apenas se deixavam governar pelo Espírito Santo). Embora não contagiado, a não ser no cérebro, ia rua fora, às vezes completamente nu, com uma panela cheia de carvão em brasa em cima da cabeça, anunciando, em termos assustadores, a chegada do juízo final para a cidade. O que ele dizia ou o que ele queria, nunca eu o pude, realmente, entender.» (pp. 151-2)

Algumas medidas seriam hoje consideradas cruéis, mas no meio do horror descrito talvez tenham sido aceites sem graves objecções. «Porque é que nos foi dada ordem de matar todos os cães e gatos, senão porque, os animais domésticos, habituados a correr de casa em casa e de rua para rua, podem transportar no pêlo ou nas peliças os eflúvios pestilenciais dos corpos infectados? Por essa mesma razão é que no princípio da epidemia o lord-mayor e os magistrados, segundo o conselho dos médicos, publicaram uma postura segundo a qual todos os cães e gatos deveriam ser imediatamente condenados à morte, sendo nomeado um oficial de polícia para fiscalizar a boa execução da ordem.» (p. 176) Terão sido mortos 40.000 cães e 200.000 gatos! 

«Muitas vezes pensei no estado de imprecaução em que se encontrava a grande massa do povo na altura em que esta calamidade caiu sobre ela e no erro das medidas tomadas em tempo útil, causa de toda a confusão que se seguiu. Essa foi a causa do número prodigioso de pessoas que sucumbiram nesse desastre, quando é certo que isso tinha podido evitar-se, com a ajuda da Providência, se medidas convenientes houvessem sido tomadas; e a posteridade poderá, se assim entender, tirar daí a melhor lição. Mas voltarei a falar deste assunto.» (p. 177)

 «Enquanto desempenhei as minhas funções, não pude deixar de exprimir junto dos meus vizinhos a minha opinião sobre a reclusão das pessoas em casa; era mais que evidente que as medidas rigorosas assim aplicadas, além de serem em si mesmas muito penosas, tinham ainda contra si não corresponderem de maneira nenhuma ao fim proposto, visto os doentes passearem todos os dias pelas ruas; e era voz corrente ter sido muito mais sensato, a todos os títulos, um método em virtude do qual se afastassem os sãos dos enfermos, depois de visitadas as casas. Nesse caso apenas se teriam deixado junto das pessoas contagiadas aquelas que, na ocorrência, tivessem pedido para ficar, declarando-se prontas a suportar a reclusão com os doentes. O nosso plano no sentido de se afastarem os de perfeita saúde dos enfermos não seria aplicado senão nas casas infectadas, e confinar os doentes não era propriamente prendê-los; os que não pudessem mexer-se não se queixariam enquanto estivessem lúcidos e dispusessem de cabeça para raciocinar. Com efeito, quando chegavam ao delírio e à inconsequência, era certo protestarem contra a crueldade da reclusão; mas, pelo que toca ao afastamento dos de saúde, achávamos ser altamente justo e razoável, para seu próprio bem, separá-los dos doentes e, para segurança das outras pessoas, conservarem-se isolados algum tempo, até ter-se plena certeza de que estavam indemnes e não podiam infectar os demais; em nossa opinião, vinte ou trinta dias chegavam para isso. Ora não há dúvida de que, se se tivessem preparado casas expressamente onde os indivíduos de saúde cumprissem a sua semi-quarentena, estes teriam muito menos razão para se considerarem lesados com semelhantes medidas que com a reclusão dos doentes nas próprias casas.» (pp. 242-3)

«Foi, com certeza, graças à gestão admirável dos referidos magistrados que as ruas se mantiveram sempre isentas de espectáculos assustadores como de cadáveres ou de coisas indecentes ou desagradáveis, a menos que alguém caísse repentinamente morto na via pública, como já se disse; mesmo nesses casos cobriam geralmente o corpo com uma manta ou uma coberta, quando não o transportavam para o cemitério mais próximo, até à noite. Todas as tarefas indispensáveis que implicavam elementos de terror, as que eram ao mesmo tempo lúgubres e perigosas, faziam-se de noite; à noite é que se retiravam de casa os doentes, se enterravam os mortos ou se queimavam as roupas infectadas; e à noite, outrossim, eram transportados todos os cadáveres para as valas comuns dos diversos cemitérios, como tive ocasião de referir; deste modo tudo estava raso de terra e fechado antes de amanhecer. E o certo é que de dia não se viam sinais da calamidade, não se ouvia nada a esse respeito, a não ser o vazio das ruas ou os gritos e lamentações veementes que por vezes as pessoas soltavam das suas janelas ou ainda o grande número de casas e de lojas fechadas.» (p. 263-4)

«Aqui outrossim devo fazer uma observação, em proveito dos que vierem depois, a respeito da maneira como as pessoas se contagiavam umas às outras: não era apenas dos doentes que se recebia directamente o mal, mas também dos de perfeita saúde. Eu explico-me: por doentes entendo aqueles que eram reconhecidos como tal, que estavam e cama, que tinham recebido tratamento e que apresentavam inchaços ou tumores. Desses, por conseguinte, toda a gente se defendia; ou estavam na cama ou em tal estado que era impossível ocultá-lo. Por de perfeita saúde entendo aqueles que haviam sido contagiados, que tinham a doença em si e no próprios sangue, embora o seu aspecto exterior nada revelasse do seu estado; mais ainda, nem eles próprios se davam conta disso, como acontecia a muita gente durante vários dias. Esses exalavam a morte por todos os lados e a todas as pessoas que deles se aproximavam; até as suas roupas tinham a infecção, as suas mãos contaminavam os objectos que tocavam, sobretudo se quentes e húmidas, o que acontecia a cada passo.» (p. 270)

«Neste ponto é mister que eu observe também que a peste, como todas as doenças, ao que suponho, agia de maneira diferente consoante a constituição de cada um. Havia quem ficasse logo prostrado e a peste manifestava-se nesses através de febres intensas, vómitos, dores de cabeça insuportáveis, dores nas costas, sofrimentos que levavam o doente a um furor delirante. Tinham outros, inchaços e tumores no pescoço ou na virilha ou ainda nas axilas, os quais até ao momento de rebentarem, causavam angústias e tormentos insuportáveis. Noutros ainda, enfim, como já observei, a infecção mantinha-se secreta e a febre minava insensivelmente os espíritos sem que eles o sentissem antes de caírem desmaiados e de passarem sem sofrimento do desmaio à morte.» (pp. 283-4)

 «É preciso, com efeito, frisar, para maior glória da população londrina, que nunca, em momento algum da epidemia, as igrejas ou assembleias estiveram inteiramente fechadas e que ninguém se recusou a assistir ao culto público de Deus, a não ser em certas paróquias onde a doença grassava com particular violência; mesmo assim, a abstenção não se manteve tanto quanto a própria violência.» (p. 294)

«No que respeita ao comércio externo, não há muito a dizer. Todas as nações comerciais da Europa tinham medo de nós; nenhum porto da França, da Holanda, da Espanha ou da Itália queria receber os nossos navios ou trocar correspondência connosco.» (p. 300)

«As dificuldades ainda eram maiores em Espanha e Portugal, onde não consentiam, por preço algum, que os nossos navios, especialmente os de Londres, entrassem nos portos e muito menos ainda descarregassem as mercadorias. (...) Também ouvi dizer que a peste fora levada para esses países por alguns dos nossos navios, particularmente através do porto de Faro, no reino do Algarve, que pertence ao rei de Portugal, e que várias pessoas aí pereceram, mas não tenho confirmação do caso.» (pp. 302-3)

«Toda a espécie de ofícios manuais da cidade, quer se tratasse de artesãos quer de lojistas, se encontravam, como disse, sem emprego, o que provocou o despedimento e o desemprego de inúmeros jornaleiros e trabalhadores, uma vez que nesses ramos só se efectuava o trabalho estritamente necessário.» (p. 314)

«... o nosso comércio manufactureiro sofreu muitíssimo, e os pobres por toda a Inglaterra sofreram as consequências da calamidade que pesara unicamente sobre a cidade de Londres. No ano seguinte, é certo, proporcionou-se-lhes ampla compensação o facto de outra terrível calamidade ter caído sobre Londres; assim, graças a uma calamidade, a city empobreceu e enfraqueceu o país, e graças a outra, igualmente tão terrível no seu género, enriqueceu-o e compensou-o. Efectivamente, quantidade infinita de móveis, de roupas e outros artigos, sem contar arsenais inteiros de mercadorias e objectos manufacturados, produzidos em toda as regiões de Inglaterra, foram devorados no incêndio de Londres, no ano seguinte ao desta terrível provação. É de calcular a prosperidade que essa destruição trouxe ao comércio de todo o reino quando se tratou de remediar a penúria e de reparar as perdas. Numa palavra, todos os operários do país tiveram trabalho e quase não chegaram para abastecer o mercado e responder à procura.» (p. 315)

Não cabe aqui descrever as desgraças tão minuciosamente relatadas por Defoe, que discorre sobre os mais estranhos comportamentos humanos durante a epidemia. O livro pretende, e consegue, dar-nos um retrato bastante fiel da vida quotidiana na cidade, numa época de fracos recursos sanitários e de rudimentar organização da sociedade.

Também é interessante referir que, após a passagem da epidemia, as pessoas regressaram aos seus antigos costumes e a peste nada modificou nas atitudes daqueles que conseguiram sobreviver. E o grande incêndio de Londres, no ano seguinte, foi como uma espécie de purificação  da cidade. Nem mesmo os que clamavam, a maioria, tratar-se de um castigo de Deus, modificaram os seus costumes.

O livro termina assim:

«Não posso continuar. Dir-se-á que não passo de um censor e acabariam por taxar-me de injusto, se me entregasse à desagradável tarefa de censurar, fosse qual fosse a causa, a ingratidão e a regressão  entre nós da iniquidade sob todas as suas formas, tal como o pude verificar com os meus próprios olhos. Concluirei, pois, o relato deste ano de calamidade com a estrofe, muito imperfeita, é certo, mas sincera, que pus no fim das minhas notas ordinárias, no próprio ano em que foram escritas: -


Medonha peste houve em Londres
no ano sessenta e cinco,
Cem mil pessoas morreram 
Mas eu, contudo, escapei.

H.F.


Lendo atenta e integralmente o livro de Daniel Defoe, conclui-se que, hoje como ontem, são muito semelhantes as reacções às grandes epidemias que assolam o mundo.


sábado, 23 de maio de 2020

HITLER, UM FILME DA ALEMANHA



Em 1977, o cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg apresentou um filme polémico, mas muito interessante, intitulado Hitler, ein Film aus Deutschland (Hitler, um filme da Alemanha), que foi exibido no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian em 15 de Março de 1980, sessão a que tive o privilégio de assistir, e em que obtive, no programa, um autógrafo do realizador.

Trata-se de uma abordagem sui generis de Syberberg, sobre as causas do nazismo, a criação do III Reich e as suas consequências. Recorrendo a uma poderosa simbologia, só totalmente apreensível por todos aqueles que tiverem um conhecimento profundo do percurso do Führer e da história da Alemanha (e da Europa) na primeira metade de do século passado, o autor encena a desmontagem da encenação que permitiu a ascensão de Adolf Hitler ao poder e o estabelecimento do regime nacional-socialista na então República de Weimar.

O filme, com a duração de sete horas, está dividido em quatro partes: 1) O Graal - Do Freixo Cósmico ao Carvalho de Goethe e às Faias de Buchenwald ; 2) Um Sonho Alemão... Até ao Fim do Mundo; 3) O Fim de um Conto de Inverno e a Vitória Final do Progresso; 4) Nós os Filhos do Inferno Recordamos a Era do Graal.

A película é falada em alemão (com legendas em inglês passando muito rapidamente) e parcialmente em inglês (sem legendas).

Inicialmente exibido nos Institutos Goethe, o filme só alcançou grande divulgação quando a sua distribuição passou a ser assegurada por Francis Ford Coppola que, inclusive, lhe alterou provocatoriamente o título, acrescentando a palavra "Nosso". Assim, passou a designar-se Our Hitler, a film from Germany.

As imagens não seguem propositadamente uma ordem cronológica, mas constituem pedaços da abordagem ensaiada por Syberberg para nos contar episódios reais ou fantasmáticos da Alemanha nazi. As personagens verdadeiras do regime raramente aparecem (apenas em excertos de filmes da época), sendo desempenhadas por bonecos ou por actores ridiculamente caracterizados.

Na primeira parte é narrado o fim da República de Weimar e é anunciada, num circo, a chegada de Hitler, o Napoleão germânico. E evocada a ideia de que "Hitler está dentro de nós" e que "Auschwitz é a batalha ideológica da guerra racial".

Na segunda parte do filme, entre outras coisas, assiste-se à saída do espírito de Hitler (personificado por um actor) do túmulo de Richard Wagner (uma ressurreição?), proferindo uma alocução, entrecortada pela transmissão radiofónica de trechos dos discursos de Goebbels, lui-même. Enquanto são projectadas as salas e o gabinete do Führer na Chancelaria do Reich, um actor incarna o papel de criado pessoal de Hitler, contando, ao som do Rienzi, os pormenores da vida quotidiana deste, e também o passeio incógnito de ambos, pelas ruas de Munique, em tempo de Natal, com referência ao Café Luitpold e à residência da Prinzregentenplatz. E ainda a neve caindo sobre Obersalzberg, onde ficava o Berghof, a residência de férias de Hitler.

Na terceira parte, surge Himmler (interpretado por um actor) em diálogo com o seu massagista secreto, conversando sobre os grandes homens e sobre a filosofia hindu. E também sobre os campos de concentração e o extermínio dos judeus. Afirma que a Alemanha é Hitler e Hitler é o Mundo, e discorre sobre a pureza da raça ariana. Curiosamente, troca impressões com o massagista sobre assuntos da política alemã e interroga-se se não deveria ser também ministro da Cultura, o que estaria de acordo com as suas funções de chefe da polícia nazi e corresponderia ao pensamento do Führer. Há também uma conversa interessante de "Himmler" com o seu astrólogo e referências a Heydrich e às suas interpretações musicais de Mozart, bem como às preocupações esotéricas do Reichführer SS.

Na última parte, aparece um actor lendo textos sobre as afirmações de Hitler, os princípios do nacional-socialismo e a crítica dos mesmos, enquanto, em fundo, são projectados excertos de filmes da época, mostrando especialmente paradas militares. Há, ao longo desta parte, inúmeras referências ao Graal, a Parsifal e à Tetralogia Wagneriana, a Constantino o Grande, Carlos Magno, Otão I, Frederico II, ao Santo Império Romano-Germânico, que Hitler pretendia incarnar (o Terceiro Reich), a Bruckner, a Nietzsche, à Civilização Ocidental,  não excluindo também críticas à República Federal da Alemanha. Segue-se uma imaginada "Disneylândia", em Berchtesgaden, evocativa da residência de Hitler, uma espécie de museu de figuras de cera do regime nazi, com toda a simbologia correspondente. Este centro fictício de atracções (a residência estival de Hitler foi destruída pela aviação aliada, exactamente para evitar romarias de saudade) convoca numerosos visitantes e é suposto ser mantido com o dinheiro dos árabes e a gestão dos israelitas! No fim, surge uma criança trazendo ao colo um boneco, que representa Hitler.

A célebre ensaísta Susan Sontag considerou o filme "one of the 20th century’s greatest works of art". Jean-Pierre Faye escreveu em 1978: «Nos anos 20, Breton e Aragon quiseram fazer uma terceira parte do Fausto. É contudo Hans-Jürgen Syberberg quem acaba de criar esse terceiro "Fausto", simultaneamente inevitável e impossível, que a Alemanha parece esperar desde Goethe. Essa obra foi agora composta com a matéria terrível da própria história alemã. Nesse espaço onde ela mergulha e nos atira à cara as suas galáxias».

Não é possível resumir em algumas linhas as sete horas do filme, abundantemente carregado de toda a mitologia germânica que o regime nazi abundantemente utilizou na prossecução dos seus propósitos.  Por vezes, tem-se a sensação de que o filme é demasiado longo, mesmo para transmitir a mensagem do realizador, mas a crítica que se pode verdadeiramente fazer é que muitas passagens são de difícil compreensão para quem desconheça, ou conheça imperfeitamente, este período da história da Alemanha. Com o passar do tempo, tornar-se-á mesmo largamente ininteligível inclusive para os próprios alemães. Mas permanecerá como obra cinematográfica de culto.


sexta-feira, 15 de maio de 2020

"PARSIFAL", DE SYBERBERG





Assinalando o centésimo aniversário da estreia de Parsifal, em Bayreuth, em 1882, o cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg (n. 1935) apresentou em 1982 uma pessoalíssima versão cinematográfica da famosa ópera de Richard Wagner.

Considerado como a coroação da sua revolucionária obra operática, Parsifal tem como sub-título Bühnenweihfestspiel, ou seja, "Festival para a Consagração de um Palco", precisamente o do Teatro de Bayreuth, para o qual foi propositadamente escrito e composto, e no qual teve representações exclusivas até 1903, quando foi apresentado na Metropolitan Opera House, de New York.

Autor de uma vasta e polémica filmografia, Syberberg concebeu este Parsifal, que é de certa forma um testamento de Wagner, como uma redenção da Humanidade. «Des emblèmes utopiques de la lumière, de choses saintes et dernières nous sont données pour la quête du Graal à travers la culture européenne» escreve Syberberg no seu livro Parsifal - Notes sur un film (1982), onde expõe a sua concepção desta obra maior do pensamento e da música e descreve a aventura que foi realizar este filme. De facto, devido à matéria de algumas das suas películas anteriores, nomeadamente Ludwig, Requiem para um rei virgem (Ludwig, Requiem für einen jungfräulichen König) (1972), Karl May (1974) e em especial Hitler: um filme da Alemanha (Hitler, ein Film aus Deutschland) (1977), a produção teve de ultrapassar inúmeros obstáculos burocráticos e financeiros e foram muitas as tentativas para impedir a realização deste projecto. As circunstâncias levaram mesmo Syberberg a alterar o plano inicial de forma a adequá-lo às possibilidades do momento, incluindo mesmo o ter sido obrigado a desistir de alguns cantores por dificuldades de calendário. 

A leitura que Syberberg faz de Parsifal é uma interpretação muito pessoal, e também provocatória, da obra-prima de Wagner, afastando-se das concepções que conhecemos, quer em encenações tradicionais, quer em encenações ditas modernas. A lenda do Graal, e dos seus Cavaleiros, habitando Mont Salvat, e a sua luta do Bem e do Mal, é atribuída a Wolfram von Eschenbach, que a consagrou em Parzival, um poema épico do século XIII. Foi nela que Wagner se inspirou para escrever o texto e a música da ópera.

A execução musical do filme esteve a cargo da Orquestra Filarmónica de Monte-Carlo, dirigida pelo maestro Armin Jordan, com a participação do Coro Filarmónico de Praga. Alguns dos papéis foram dobrados. Assim, Amfortas foi interpretado pelo próprio maestro Armin Jordan e cantado pelo baixo-barítono Wolfgang Schöne; Titurel, interpretado por Martin Sperr e cantado pelo baixo Hans Tschammer; Gurnemanz, interpretado e cantado pelo baixo Robert Lloyd; Parsifal interpretado por dois actores, Michael Kutter e parcialmente no II Acto e no III Acto por uma mulher, Karin Krick, e cantado pelo tenor Reiner Goldberg, havendo ainda, no início, um Parsifal em criança, interpretado por David Luther; Klingsor, interpretado e cantado pelo baixo Aage Haugland; Kundry, interpretado por Edith Clever e cantado pelo soprano Yvonne Minton.

A cena vai-se modificando ao longo dos três actos, apresentando uma variedade de paisagens em que figuram rochedos, troncos de árvores, ruínas de monumentos, marionetas, profusão de bandeiras (entre as quais a do III Reich), lagos, etc., enfim, tudo o que a imaginação de Syberberg pôde conceber, com referências a Luís II da Baviera, ao próprio Wagner, a Nietzsche, a Karl Marx ou a Ésquilo. Muitas vezes presente, em fundo, uma gigantesca máscara mortuária de Richard Wagner.

Especial lugar conferido aos grandes símbolos da epopeia, o Cálice e a Lança, e também cisnes, cruzes, coroas, o escudo de Parsifal representando a "Medusa" do Caravaggio, a fonte, o lava-pés, o baptismo, o Encantamento de Sexta-Feira Santa.

O III Acto termina com o Parsifal masculino a abraçar o Parsifal feminino e a aparição de uma caveira coroada, pormenor de um dos túmulos imperiais da Cripta da Igreja dos Capuchinhos, de Viena, Panteão da Casa de Habsburg.

Para a devida compreensão desta encenação, a todos os títulos surpreendente, é indispensável a leitura do livro de Syberberg acima referido, onde o cineasta desenvolve a sua concepção da obra.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

A PERDA DA LIBERDADE



Depuis les ténèbres, qu’avons-nous appris ?, par Eva Illouz

TRIBUNE. A l’issue de deux mois de confinement, la grande sociologue franco-israélienne dresse pour « l’Obs » un premier bilan, en 7 leçons éclairantes, d’une crise mondiale sans précédent dans l’histoire humaine.

Par Eva Illouz (Sociologue)
Publié le 11 mai 2020 à 07h00 Mis à jour le 11 mai 2020 à 13h58
Temps de lecture 12 min 


Une femme regarde par la fenêtre. Paris, le 1er avril 2020. (Omar Havana / Hans Lucas via AFP)Une femme regarde par la fenêtre. Paris, le 1er avril 2020. (Omar Havana / Hans Lucas via AFP)

Lorsqu’elle a écrit « Eichmann à Jérusalem » (1963), Hannah Arendt a utilisé une méthode d’analyse que nous pouvons qualifier d’anti-historique : elle refusait de comprendre le présent avec des analogies tirées du passé ; elle rejetait les catégories philosophiques utilisées, et usées, pour donner un sens à quelque chose d’entièrement nouveau. Le livre était un prélude à un questionnement qui ne la quitta plus jusqu’à sa mort : Comment juger le présent ? Ses réflexions l’amenèrent à souscrire à l’affirmation de Tocqueville selon laquelle, en temps de crise, l’esprit « marche dans les ténèbres ». (1) La crise du coronavirus est sans précédent à bien des égards, mais nous pouvons déjà tirer quelques leçons simples depuis les « ténèbres ».


Leçon n°1. Nous vivons à l’ombre d’un État puissant

4,6 milliards d’habitants de la planète ont volontairement renoncé à leur mobilité, leur travail et leur vie sociale, sans grandes et notables protestations. Ces milliards de personnes ont de plein gré abandonné les aspects les plus fondamentaux de leur liberté, alors que nous manquons encore, dans les faits, d’informations-clés (par exemple, combien d’individus sont réellement contaminés et donc quel est le pourcentage réel des décès). Elles ont été confinées à leur domicile (à supposer qu’elles en aient eu un), confirmant l’assertion de Thomas Hobbes selon laquelle la peur de la mort est la passion politique la plus puissante, et que nous serons toujours prêts à sacrifier notre liberté pour notre sécurité. Ce que le confinement de ces milliards de personnes a démontré, c’est l’extraordinaire pouvoir de l’État dans le monde entier et, partout, l’extraordinaire capacité d’obéissance des citoyens à ce dernier.

Comment savons-nous que l’État a été extraordinairement puissant ? Par la facilité avec laquelle il a émis et mis en œuvre des décrets et des décisions parfois absurdes. Israël a interdit à ses citoyens de marcher au-delà de 100 mètres de leur domicile (alors que la France, avec 10 fois plus de personnes contaminées, a autorisé un périmètre de 1 km) ; Modi a confiné plus d’un milliard d’Indiens du jour au lendemain, sans leur laisser le temps de se préparer, précipitant des millions de pauvres sur les routes de l’Inde, où certains ont parfois trouvé la mort. Israël a autorisé les prières publiques mais pas les cours de yoga... Toutes ces aberrations et incohérences prouvent l’énorme pouvoir de l’État et la soumission des citoyens.

Les néolibéraux trompettent depuis 40 ans que l’État est trop fort, inefficace, bouffi, superflu. Mais ils sont nombreux parmi eux à avoir été contraints de faire volte-face, du jour au lendemain. Après des décennies passées à considérer une croissance économique sans fin comme l’incontournable condition des sociétés, la dimension politique et morale des affaires humaines a fait son grand retour au premier plan des préoccupations publiques.

Seulement, la politique qui nous est revenue est d’un genre totalement nouveau : il s’agit d’une politique sur les conditions de vie, qui aura à gérer de plus en plus de catastrophes naturelles – écologiques et biologiques. Le Coronavirus nous offre ainsi un aperçu sur ce que pourrait être une politique dont le but serait de garantir les conditions de vie alors que l’environnement et le climat nous menacent d’effondrement.


Mais – et c’est la leçon n°2 – tous les États n’ont pas exercé leur pouvoir de la même manière

La crise du coronavirus a révélé aux pays et aux nations toutes les forces et les faiblesses de leurs régimes politiques. Israël a prouvé qu’il était ce que nous savions : le pays où les problèmes civils sont traités comme des problèmes de sécurité. Les services secrets ont pu utiliser sans aucune difficulté les technologies du traçage antiterroriste pour suivre les porteurs du virus – ce qui confirme que tous les Israéliens sont placés sous leur contrôle depuis fort longtemps. Les États-Unis ont montré à quel point leur conception de la notion de liberté était extrême : certains États, comme le Kansas, ont ainsi rejeté les décrets de confinement au nom du droit au rassemblement religieux dans les églises (on trouve ici une forte analogie avec l’appel du rabbin Kaniewski à rouvrir les écoles talmudiques en Israël), tandis que d’autres Américains réclamaient bruyamment le droit de faire les magasins. Le libertarianisme cultivé par la droite radicale ces dernières décennies s’oppose radicalement à la gestion d’une crise sanitaire.

Israël a aussi fermé ses frontières alors que le pays ne déplorait pas un seul mort, tandis que la France a laissé sa frontière avec l’Italie ouverte, y compris en pleine hécatombe. Les démocraties illibérales telles qu’Israël, la Pologne, la Turquie et la Hongrie se sont servies de la crise du coronavirus pour faire croire que le Reichstag était en feu et en ont profité pour suspendre les libertés civiles et révoquer le pouvoir du parlement et des tribunaux (Netanyahou a ainsi échappé au procès qui l’attendait le 17 mars). Même une solide démocratie comme les États-Unis flirte aujourd’hui avec l’autoritarisme antidémocratique d’un Trump de plus en plus erratique.

D’autres pays, comme la Suède, la Hollande ou l’Allemagne, ont préféré miser sur la confiance et la responsabilité de leurs citoyens pour prendre soin d’eux-mêmes et des autres ; ils ont ainsi géré la crise en combinant esprit civique et liberté (les résultats de ces politiques ne pourront être évaluées que dans quelques mois).

Car le virus est tout sauf biologique : il est d’abord un événement politique, profondément révélateur des relations entre État et citoyens. La leçon que nous pouvons en tirer pour l’avenir est que seule la combinaison « démocratie forte – Etat providence » pourra s’offrir le luxe de défendre la vie des citoyens en trouvant un équilibre entre leur liberté, leur survie économique et leur santé. Tandis que les démocraties semi-libérales ou illibérales se servent des crises (sanitaires ou autres) pour faire des coups d’Etat et pour piétiner les droits des citoyens.

Une manifestation contre un confinement « excessif » à Lansing, dans le Michigan, le 15 avril 2020.
Une manifestation contre un confinement « excessif » à Lansing, dans le Michigan, le 15 avril 2020.

Leçon n°3. Le néolibéralisme est vraiment nuisible à la santé

Le néolibéralisme n’a cessé d’éroder les ressources publiques et même de piller l’État au profit des riches. Il n’est donc pas surprenant que les dirigeants néolibéraux, dans leur ensemble, aient été les plus lents à réagir à la crise. Trump, Bolsonaro, Duterte, Johnson, les industriels du nord de l’Italie, ont d’abord promu le « darwinisme biologique » (que les forts survivent) qui reflétait leur « darwinisme social » (quiconque peut se battre et lutter ira de l’avant ; celui qui ne le peut pas tombera sur le bas-côté). Mais, comme ils l’ont rapidement découvert, l’État moderne a formé un pacte sanitaire avec ses citoyens : même aux États-Unis – où les soins de santé sont privatisés et difficilement accessibles aux pauvres et à la classe ouvrière –, les citoyens s’attendent à ce que l’État soit responsable de la gestion d’une crise sanitaire. Le néolibéralisme a sapé les conditions de ce pacte.

Les hommes d’affaires qui dirigent de plus en plus souvent la politique pensent et agissent comme des hommes d’affaires : réaliser des investissements dans des secteurs non rentables (comme la prévention des épidémies) est aux antipodes d’un état d’esprit exclusivement tourné vers les bénéfices. Trump a coupé les budgets de l’agence fédérale chargée de la gestion des épidémies (la Fema) et vient, en ce moment-même, de réduire les fonds alloués à la lutte contre la pandémie. Seulement, appréhender le domaine social comme un bilan comptable, dans lequel les bénéfices doivent prévaloir sur les coûts, hystérise les rapports sociaux et déshumanise le pouvoir.

Le néolibéralisme a été très avantageux pour les riches et les politiciens qui les servent, mais il est éminemment dangereux pour le reste d’entre nous parce qu’il détruit la notion même de « bien public » ainsi que le contrat social entre l’État et ses citoyens. Si la gestion de cette crise suit le modèle de 2008 (renflouer les riches) plutôt que celui du New Deal (aider toutes les classes sociales, et en particulier les chômeurs), elle débouchera sur un néo-féodalisme et des troubles sociaux massifs.


Leçon n°4. La confiance est durement ébranlée

La plupart des pays du monde étaient extrêmement mal préparés et ne disposaient pas de l’équipement médical de base pour faire face à cette épidémie. Avant tout parce que la mondialisation et la délocalisation de l’économie ont rendu la plupart des pays dépendants de la Chine quant à leurs équipements médicaux. Mais les dirigeants ont systématiquement sapé la confiance des citoyens, bien au-delà de la question des équipements.

Netanyahou a outrageusement utilisé la crise pour échapper à la loi sans vergogne. Trump a appelé sa base suprémaciste blanche à enfreindre les règles de confinement, dans les Etats démocrates du Minnesota et du Michigan. Le président du Brésil, Jair Bolsonaro, s’est rendu à un rassemblement anti-confinement. Enfin, le ministre israélien de la Santé, Yaakov Litzman, est devenu la risée universelle lorsqu’il a violé les règles fondamentales de distanciation sociale émises par son propre ministère et a prédit avec une assurance désinvolte que le messie nous sauverait des pandémies d’ici le mois d’avril. Le même Litzman est soupçonné de corruption et d’abus de confiance, et menacé d’un procès. Pourtant, Netanyahou lui a confié un autre portefeuille, essentiel pour la reprise économique.

Dans de nombreux pays du monde, une grande partie de la population se sent profondément trahie par ses dirigeants. On peut donc dire que les endroits les plus touchés du globe seront ceux (comme Israël) où la crise sanitaire génère à la fois une crise économique et politique. La question sanitaire sera-t-elle à l’origine d’insurrections citoyennes à travers le monde? L’interrogation demeure, mais il n’est pas certain que la révolte jaillisse là où on l’attend.

A Tel Aviv, le 2 mai 2020, des Israéliens manifestent, à distance les uns des autres, pour que la Cour Suprême s’oppose à l’accord de coalition gouvernementale entre le premier ministre Benjamin Netanyahu et son rival Benny Gantz.
 A Tel Aviv, le 2 mai 2020, des Israéliens manifestent, à distance les uns des autres, pour que la Cour 
Suprême s’oppose à l’accord de coalition gouvernementale entre le premier ministre Benjamin Netanyahu et son rival Benny Gantz.

Leçon n°5. La maison n’est pas sweet après tout

En temps de guerre, la peur de la mort existe mais nous l’affrontons généralement avec d’autres personnes, nous savons qui est l’ennemi et nous pouvons nous appuyer sur le vaste répertoire symbolique de l’héroïsme pour lutter ou nous cacher. Or, dans le contexte actuel de peur du virus, nous sommes réduits à de très petites unités, et parfois même entièrement isolés du reste du monde, il n’y a aucune action à entreprendre, et nous avons à notre disposition très peu de répertoires symboliques connus dans lesquels puiser. La bombe mortelle peut s’avérer ne pas être celle que l’ennemi projette sur nous, mais ce que nous-mêmes, sans le savoir, portons en nous et propageons à quelqu’un d’autre.

C’est pourquoi nous nous sommes tous confinés dans nos maisons ou à proximité, dans la peur de quelque chose d’invisible qui a suspendu nos relations avec les autres. Mais si nous avons appris quelque chose durant cette période, c’est que la maison ne peut pas réparer l’absence d’un monde partagé. La production et la consommation sont devenues les principaux moyens par lesquels les contemporains créent leur propre sens des valeurs, socialisent et forgent jusqu’à leur vie intime. Le travail est l’endroit où nous exerçons nos compétences, il nous donne un but et un statut. Les loisirs nous procurent des expériences de plaisir, des occasions de jeu et la possibilité de voir et d’être vus par les autres. En confinement, nous avons ainsi appris que la maison n’est supportable que lorsque le monde extérieur y est intégré via la télévision, Internet ou les services de livraison. En dehors de cela, la douceur du foyer devient amère, en particulier pour ceux qui vivent dans des logements exigus conçus pour les classes moyennes et ouvrières des zones urbaines et périurbaines.


Leçon n°6. Dans une telle crise, la valeur du travail et de la production se trouve complètement inversée

Sur les réseaux sociaux, on a vu circuler une blague sur Cristiano Ronaldo, qui gagne des millions de dollars, et les infirmières, qui touchent un salaire de misère. La blague incitait les soignantes à demander secours et aide financière au joueur de football. La plaisanterie a souligné l’inversion de la valeur et du prestige dont nous sommes témoins. Nous devons en effet notre survie aux femmes et aux hommes qui travaillent dans les supermarchés, dans les hôpitaux, aux gens qui nettoient les rues, aux livreurs qui nous apportent de la nourriture à domicile, aux agents qui entretiennent le réseau d’électricité ; ce sont ces personnes qui sont devenues essentielles à notre existence. Les célébrités ou les financiers sont apparus dans toute la splendeur de la vacuité de leur travail, tandis que ceux qui occupent les activités habituellement invisibles et dévalorisées se sont révélés être nos piliers. S’il y a une leçon à retenir ici, c’est que notre monde « normal » fonctionne avec une échelle de valeurs fausse et inversée. Puisque les personnes qui nous ont protégés et qui ont contribué à maintenir l’ordre social se trouvent en bas de l’échelle, alors que celles qui se situent au sommet ont été, dans l’ensemble, entièrement inutiles.

Globe terrestre portant un masque de protection. Avril 2020.
Globe terrestre portant un masque de protection. Avril 2020.

Leçon n°7. La relation entre laïques et religieux ne sera plus jamais la même

Tant dans leurs réactions à la crise que dans les façons de la gérer, les divergences entre religieux et laïques ont été exacerbées comme rarement. Les évangéliques aux États-Unis et les ultra-orthodoxes en Israël n’ont pas grand respect pour la science, ils mènent une existence insulaire et n’écoutent que les recommandations de leurs prêtres et de leurs rabbins. Les laïques, pour leur part, se sont comportés avec un sens exemplaire des responsabilités collectives : les jeunes ont suivi les injonctions du ministère de la Santé et ont fait d’énormes sacrifices en termes de liberté et de survie économique, afin de protéger les plus âgés.

Dans le contexte d’Israël, il y a toujours eu une sorte de suffisance envers le soit disant « panier vide » des laïques (cette idée, en hébreu, selon laquelle seuls les religieux auraient accès à un monde riche de symboles). En tout état de cause, nous avons fait là l’expérience concrète de l’extraordinaire sens civique de la population laïque, grâce à la discipline dont ces citoyens ont fait preuve et aux réseaux de bénévoles qu’ils ont mis en place. Cela doit rester un jalon dans la conscience et l’identité des laïques. Leur comportement pendant la crise démontre que la religion ne peut plus revendiquer de supériorité morale.

De nombreux dirigeants, à travers le monde, ne devraient pas dormir trop profondément. Au cours de l’histoire, des révoltes et des révolutions se sont produites pour beaucoup moins.

Traduit de l’anglais par Marie Lemonnier

(1) « Quand le passé n’éclaire plus l’avenir, l’esprit marche dans les ténèbres », Alexis de Tocqueville, « De la démocratie en Amérique ».

Eva Illouz, bio express

Eva Illouz.
Eva Illouz.

Sociologue franco-israélienne, Eva Illouz est une figure majeure de la pensée mondiale. Directrice d’études à l’EHESS et professeur à l’Université hébraïque de Jérusalem, elle étudie le développement du capitalisme sous l’angle des subjectivités. Elle a récemment publié « Happycratie » (2018), « les Marchandises émotionnelles » (Premier Parallèle, 2019) et, le 6 février 2020, « la Fin de l’amour », aux éditions du Seuil.



domingo, 10 de maio de 2020

O ESTADO TOTALITÁRIO EM FRANÇA






Dans celle-ci, un médecin généraliste officiant à Marseille, Karim Khelfaoui, se dit «révolté» et pousse un coup de gueule d’un peu plus de deux minutes «pour alerter contre trois violations du secret médical qu’est en train d’organiser sciemment le gouvernement».

«La première, c’est qu’il nous demande de faire remonter tous les cas positifs. Ce qui existe déjà dans le cas des maladies à déclaration obligatoire. Mais en plus, il nous demande de recenser tous les proches qui vivent avec vous, avec leurs coordonnées et leurs adresses pour les faire remonter auprès de l’assurance maladie, afin qu’ils leur envoient une brigade sanitaire», développe-t-il. «Je suis médecin, je ne suis pas flic. On me demande contre quelques euros de vous fliquer. C’est hors de question.»

Deuxième point : il évoque un projet de loi, en débat au Parlement, instaurant le recueil des données des patients sans leur «consentement». «C’est-à-dire que vous n’aurez plus votre mot à dire sur où vont vos données de santé.»

Dernier point : «Ils sont en train de déployer une plateforme nationale des données de santé, qui s’appelle le F Data Hub. Et qui est propriétaire de ces données ? Les serveurs de Microsoft […] Si vous trouvez ça normal, moi non», affirme-t-il à la fin de cette vidéo virale, avant de demander à ses abonnés de la partager. Depuis, 28 000 personnes l’ont fait, en comptant uniquement les chiffres visibles sur sa page.

Dans cette séquence, le médecin, très actif sur les réseaux sociaux depuis le début de la crise, détaille en réalité plusieurs points prévus par le projet de loi de prorogation de l’état d’urgence sanitaire, présenté en Conseil des ministres le 2 mai, et examiné ces jours-ci par l’Assemblée nationale.

Projet de loi

L’article 6 de ce texte prévoit, en effet, qu’«aux fins de lutter contre la propagation de l’épidémie de Covid-19 et pour la durée strictement nécessaire à cet objectif ou, au plus tard, pour une durée d’un an à compter de la publication de la présente loi, des données relatives aux personnes atteintes par ce virus et aux personnes ayant été en contact avec elles peuvent être partagées, le cas échéant sans le consentement des personnes intéressées, dans le cadre d’un système d’information créé par décret en Conseil d’Etat et mis en œuvre par le ministre chargé de la Santé».

L’objectif affiché par le gouvernement, grâce à cette collecte de données : repérer puis casser ce qu’on appelle les «chaînes de contamination».

Ce dispositif prendra la forme de deux fichiers. Le premier, le Sidep (Service intégré de dépistage et de prévention), identifiera les personnes atteintes par le Covid-19. Le second, «Contact Covid», constituera un fichier de l’Assurance maladie où seront recensés les «cas contacts». Comprendre : les personnes qui ont pu ou peuvent être en lien avec la personne infectée.

«Le tracing de niveau 1 sera opéré par les médecins. Le tracing de niveau 2 sera fait par l’Assurance maladie, le tracing de niveau 3 est fait par les agences régionales de santé (ARS) pour identifier les zones de forte circulation virale. La surveillance épidémiologique locale et nationale sera organisée par Santé publique France et la direction générale de la santé», a depuis détaillé le ministre de la Santé Olivier Véran.

Le projet de loi précise aussi que «le service de santé des armées, les communautés professionnelles territoriales de santé, les établissements de santé, maisons de santé, centres de santé et médecins prenant en charge les personnes concernées, ainsi que les laboratoires autorisés à réaliser les examens de biologie médicale de dépistage sur les personnes concernées» pourront également avoir accès à ces données.

Secret médical

Cette collecte de données n’inquiète pas seulement le docteur Karim Khelfaoui sur Facebook. Dans un communiqué publié ce 6 mai, l’Académie de médecine rappelle : «Le secret médical est un principe majeur du droit des personnes, une composante de la dignité humaine et du respect de la vie privée, un élément fondamental de la relation de confiance médecin – malade.» Et estime qu’une telle démarche n’est envisageable que «si elle est proportionnée aux risques encourus. Plusieurs conditions d’ordre éthique et juridique devront alors être impérativement garanties». Parmi elles, selon l’Académie de médecine, le malade doit pouvoir s’opposer à la transmission des informations le concernant. Et ce, «sans que ce choix n’ait de conséquence sur sa propre prise en charge médicale».

Alors que le gouvernement envisage de conserver ces données pendant un an maximum, l’Académie estime que cette durée est trop longue. «Les systèmes d’information créés devront être hautement protégés et fonctionner pendant une durée limitée, ne devant en aucun cas excéder le temps nécessaire à la lutte contre l’épidémie.»

Dans un communiqué également publié cette semaine, l’ordre des médecins a, lui aussi, exprimé ses craintes. Il demande à ce que le projet de loi «explicite que la nature des données que les médecins seront amenés à transmettre sera strictement limitée aux seules fins de lutter contre la propagation de l’épidémie de Covid-19, durant la période limitée que prévoit la loi», et «écarte toute confusion entre cette finalité et la prise en charge médicale individuelle des personnes concernées, qui reste assumée par les médecins et l’équipe de soins dans les conditions habituelles».

De son côté, la Commission nationale de l’informatique et des libertés (Cnil) rendra prochainement un avis sur ce décret du gouvernement. Devant les députés de la commission des lois, sa présidente, Marie-Laure Denis, a assuré que la Cnil «veillera à limiter le nombre d’accès, à prévoir des règles d’habilitations très strictes […] pour éviter d’éventuels abus».

Deux euros

Autre point abordé dans la vidéo du médecin généraliste de Marseille : la prime attribuée aux médecins qui accepteraient de donner des informations supplémentaires sur les patients touchés par le Covid, ainsi que les cas contacts. Là aussi, c’est exact. Dans le cadre du déconfinement, et de la traçabilité des personnes infectées et de leurs proches, les médecins percevront une rémunération supplémentaire. En l’occurrence, deux euros pour chaque cas contact saisi avec des éléments de base. Ou quatre euros pour chaque cas contact avec saisie de données plus complètes. «Le détail des données à saisir selon le niveau de rémunération prévu sera précisé dans les prochains jours», précise le site de l’Assurance maladie pour les médecins.

Enfin, dernier point évoqué dans la vidéo de Karim Khelfaoui : le fait que toutes ces données seront hébergées sur les serveurs du géant américain Microsoft. C’est encore vrai, mais cela ne signifie pas forcément que la firme américaine aura la main sur ces données.

«Big Brother médical»

En effet, comme le détaillait à l’époque Mediapart, une nouvelle plateforme, le «Health Data Hub», qui centralise les données de santé des Français, a été mise en place en décembre 2019. Elle a remplacé le Système national des données de santé (SNDS). Son but ? «Favoriser l’utilisation et multiplier les possibilités d’exploitation des données, aussi bien en recherche clinique qu’en termes de nouveaux usages, notamment ceux liés au développement des méthodes d’intelligence artificielle.»

Nouveau «big brother médical», ou façon plus efficace de traiter les données de santé ? La question a été soulevée lors du lancement (récent) de la plateforme. D’autant que le choix de l’hébergeur s’est en effet porté sur Microsoft, alimentant les soupçons d’une mainmise des Gafam sur ces données personnelles, alors qu’aux Etats-Unis, Google détient déjà les données médicales de millions d’Américains.

Interrogée à l’époque, Stéphanie Combes, cheffe de la mission d’administration des données de santé à la Direction de la recherche, des études, de l’évaluation et des statistiques (Drees) et cheffe de projet Health Data Hub, assurait à Mediapart : «Cela ne veut pas dire que c’est Microsoft qui administrera la plateforme […] Il y a différentes briques permettant d’assurer un maximum de sécurité entre les différentes couches. Les données seront chiffrées et ce n’est pas Microsoft qui détiendra la clef des déchiffrements.»