domingo, 22 de dezembro de 2019

A VIDA SEXUAL EM ROMA




Li, agora, A Vida Sexual na Roma Antiga, de Géraldine Puccini-Delbey, que comprei na data da sua edição, 2010, mas que permanecera em descanso na minha biblioteca durante quase dez anos. Trata-se da tradução portuguesa de La vie sexuelle à Rome, publicada em 2007. Importa referir que o livro está muito bem traduzido, o que a maior parte das vezes não acontece, e, por isso, aqui deixo o nome do tradutor, Tiago Albuquerque Marques, que não conheço de parte alguma mas cujo trabalho é meritório. Apenas detectei uma falha: "concelho" em vez de "conselho". Os nomes dos tradutores, que são considerados juridicamente como autores, costumam figurar em letras diminutas nas traduções portuguesas. Este livro não foge à regra.

Trata-se de uma das mais interessantes e completas obras que conheço sobre a sexualidade na velha Roma, abrangendo o período que vai da criação da Monarquia (753 AC) ao estabelecimento da República (509 AC) e ao Império (desde 27 AC até 476), ilustrando as diversas formas de sexualidade e como eram consideradas à época. A autora documentou-se pormenorizadamente, e o texto encontra-se recheado de citações de autores clássicos, como Apuleio, Aulo Gélio, Catão, Catulo, Cícero, Estácio, Horácio, Juvenal, Lucrécio, Macróbio, Marcial, Ovídio, Plauto, Plínio, o Jovem, Plínio, o Velho, Plutarco, Propércio, Quintiliano, Salústio, Séneca, Tácito, Terêncio, Tito Lívio, Varrão, Virgílio, etc.

Não é fácil condensar em poucas linhas a longa dissertação de Géraldine Puccini-Delbey, pelo que farei apenas breves considerações e transcreverei tão só alguns trechos do texto que me pareçam mais importantes, especialmente destinados àqueles que se encontram pouco familiarizados com os costumes romanos. Importa, porém, notar desde já que a autora refere várias vezes a diferença existente entre as sexualidades das antigas Grécia e Roma, que muita gente supõe serem semelhantes.

O primeiro capítulo é dedicado à Instituição do Casamento, fundamental em Roma. Escreve GP-D: «O matrimonium romano é uma instituição que implica uma mãe (mater). Devemos a Benveniste o ter mostrado a singularidade do nome latino do casamento (matrimonium), que significa "condição legal de mater": "O casamento é o estado da mãe ao qual se destina a rapariga. A ideia que está implícita na palavra é a de que um homem se casa com uma mulher, in matrimonium ducere, 'para dela obter filhos' segundo a formulação legal"» (p.31)

Na maioria das vezes o casamento não é efectuado por amor mas por conveniências económicas e sociais e destina-se essencialmente à procriação. A concepção romana do casamento, devido à "emancipação" da mulher, encontra-se profundamente alterada nos nossos dias.

Como se verificará ao longo da obra, o Cristianismo apoderou-se neste campo, e também noutros, da organização romana.

A idade mínima para a realização de um casamento válido era de 12 anos para as raparigas e de 14 anos para os rapazes.

«A maturidade física dos jovens é, portanto, o critério mais importante, ainda que a consumação do casamento não seja necessária para que ele seja reconhecido como válido. A entrada na idade adulta - simbolizada pela adopção da toga branca, no lugar da praetexta, bordada a púrpura e marcada pela aquisição de plenos direitos enquanto cidadão - parece situar-se no meio da adolescência, por volta dos 15-16 anos, para os poucos indivíduos acerca dos quais dispomos de informação.» (p.36)

«Um casal idoso pode também ser objecto de censura pública: Plínio, o Jovem, relata que se criticou vivamente a união, considerada inconveniente, entre "uma mulher de ilustre nascimento, já no declínio da vida, viúva há muito" e "um rico velhote paralítico". A Lex Iulia de maritandis ordinibus de 18 AC, quanto aos casamentos de ordens, e a Lex Papia Poppaea de 9 DC (baptizadas com o nome dos dois cônsules que as propuseram) proíbem o casamento às mulheres de mais de cinquenta anos e aos homens de mais de sessenta. Um casamento para além desses limites é um escândalo, porque os membros do casal, considerados estéreis, evidentemente não se casam para ter filhos, mas apenas para satisfazer as suas pulsões sexuais (ad libidinem). (pp. 38-9)

«[Depois do casamento] O escravo masculino favorito, que fazia as delícias do seu senhor, passou a ser inútil (concubinus iners). Apesar da sua tristeza, deverá aceitar a ruptura e retomar o seu lugar entre os escravos vulgares.» (p. 43)

«Na época clássica subsistem três proibições que qualquer esposa que quer preservar a sua honra deve cumprir: fazer amor durante o dia; fazer amor sem ser no escuro; despir-se. Fazer amor em plena luz é um acto considerado como uma libertinagem desavergonhada, reservado às prostitutas.» (p.46)

«No decorrer do casamento, a questão da intimidade do casal é delicada. Com efeito, as luxuosas casas romanas dispõem de muitos criados, uma família que não deve deixar ao casal proprietário nenhuma intimidade. Estará ele só no quarto conjugal? Nem sempre: um ou vários escravos podem estar perto da cama. É frequente que os escravos durmam à porta dos esposos e os vigiem. "Os escravos frígios masturbavam-se do outro lado da porta, sempre que a mulher de Heitor cavalgava o marido", goza Marcial num dos seus epigramas.» (p. 47)

«O historiador Paul Veyne considera que ocorreu uma modificação significativa aquando da transição da República para o principado, analisando-o como se segue. Para ele, a moral da época republicana é "uma moral cívica": até ao século I da nossa era, o romano é, antes de mais, um ciuis, um cidadão que deve preencher todos os seus deveres cívicos, Um dado relato mostra que o casamento é, entre outros, um dever perante a pátria. Por volta do ano 100 antes da nossa era, um censor declara perante uma assembleia dos cidadãos: "O casamento é fonte de problemas, todos nós o sabemos; no entanto, devemos casar por civismo."» (p. 54)

«Com a chegada de Augusto ao poder, o papel dos homens muda: de cidadãos militantes durante a República, passam a ser ilustres locais, súbditos fiéis do imperador, submissos a um poder cada vez mais tirânico que os retira dos debates políticos do fórum. O autocontrolo, qualidade necessária para quem quer governar, deixa de ser uma virtude cívica para ser um fim em si. Tal é o ideal do estoicismo, corrente filosófica dominante na época imperial. Segundo Paul Veyne, essa corrente prega uma "nova moral do casal". O homem romano deve mostrar-se, oficialmente, um esposo bom e respeitar a esposa. Esta mutação cultural também é favorecida por platónicos como Plutarco, que considera o amor conjugal como uma forma superior de amizade.» (pp. 54-5)

«O estatuto matronal é constituído por normas que visam preservar a matrona de qualquer contacto que a possa "manchar". A codificação estrita do traje feminino faz parte dessas normas. Horácio opõe claramente os dois tipos de trajes que permitem distinguir uma "mulher honesta" de uma prostituta. O primeiro é o de todas as esposas romanas legítimas, viúvas ou divorciadas, que apenas deixa entrever o rosto, sendo constituído por um "vestido comprido até aos pés", a stola, de cor branca, sobre a qual se coloca um casaco, a palla, cujo véu é colocado sobre a cabeça para sair. A stola é, por vezes, completada pela instita, um véu cosido na parte inferior do vestido que chega a esconder os pés da matrona mais preocupada com a sua virtude. O segundo traje é o da prostituta que sai; o véu é colocado para trás e veste-se uma toga por cima de uma túnica curta, de cores vivas, proibidas às mulheres honestas, e de tecido leve, ou até mesmo transparente: permite-lhes exibir os seus encantos e não "enganar sobre a mercadoria", como Horácio realça com humor. O amarelo está reservado sobretudo às prostitutas.» (p. 57)

«A castidade (pudicitia) e o pudor (pudor) são as qualidades morais mais importantes que a esposa deve manifestar. Esta noção de "pudor" vai muito além da reserva virtuosa. Com efeito, ela designa precisamente a pureza sexual da mulher, a integridade física do corpo livre, isto é, a virgindade para uma jovem, a fidelidade sexual para uma esposa. ... Toda a relação adúltera seria uma mancha irremediável que a mulher iria transmitir pelo sangue. Os Antigos acreditavam que o esperma do homem se misturava com o sangue da mulher. Além disso, uma mulher adúltera ou violada mistura o sangue de um estrangeiro com o seu, perdendo assim a sua pureza, necessária para garantir uma descendência legítima. Este tabu arcaico da mancha física torna-se, com o tempo, um valor moral que distingue a mulher honrada das outras.» (p. 59)

«O verdadeiro dote de uma esposa são os bons costumes, as suas virtudes. O teatro de Plauto defende esta ideologia. Cinco séculos mais tarde Apuleio retoma esta ideia nos mesmos termos. A castidade é um dote muito mais importante do que o dote pecuniário.» (p. 60)

«O cúmulo da virtude para uma esposa pudica ou casta é de ser uniuira, isto é, apenas conhecer um marido. Apesar da multiplicação dos divórcios e dos novos casamentos no final da República, a moral pública continua a elogiar o casamento único e louvar os méritos da esposa que se casou apenas uma vez. » (p. 61)

«Os epitáfios que afirmam que uma mulher foi casada uma única vez são numerosos, mas tornam-se muito raros quando se trata de um homem. Estamos perante uma virtude tipicamente feminina. Com Tácito, o elogio das qualidades de Germânico é único no seu género; menciona que ele apenas conheceu um casamento e que só teve filhos legítimos. Valério Máximo salienta que Germânico apenas teve relações sexuais com a sua esposa, comportamento excepcional para um homem e digno de ser citado.» (p. 61)

«No que diz respeito ao casamento mais divulgado no final da República, o casamento site manu, o divórcio tanto pode ser obtido pelo homem como pela mulher, e sem recorrer à menor formalidade judicial. O primeiro divórcio mencionado pela tradição teria ocorrido em 231 AC: um cidadão ter-se-ia separado da sua esposa porque ela não podia ter filhos.» (p. 62)

«Uma viúva rica volta a casar ou fica com vários amantes. Com efeito, algumas optam pela preservação dessa condição, para serem livres de amar e poderem controlar a sua vida, assim como a sua fortuna. Um exemplo célebre é o de Clódia, a irmã de Clódio, inimigo de Cícero: o seu comportamento de mulher só, após a morte do marido, choca a moral tradicional, e ela é acusada se comportar como uma prostituta. Cícero, sem a nomear directamente, descreve o género de "mulher que não casou" e que abre a sua casa a todos, que se instala na vida de prostituta, participa em banquetes em Roma, em Baías, e que dos seus jardins nas margens do Tibre, gosta de observar os jovens banhistas para escolher, a cada dia, as suas boas fortunas. Aliás, devido à lei juliana sobre o adultério, uma mulher viúva que tenha uma relação corre o mesmo risco que uma mulher casada, podendo ser perseguida judicialmente por impudicitia, isto é, por violação da integridade sexual de um corpo livre por acto de stuprum (relação sexual ilícita). Nesse sentido, durante o principado, as viúvas não beneficiam de uma maior liberdade sexual do que as mulheres casadas do ponto de vista jurídico. No entanto, a emancipação feminina ocorrerá realmente a partir do último século antes de Cristo.» (pp. 62-3)

«Para os homens, tudo se passa de maneira muito diferente. Um homem viúvo pode servir-se das suas servas, pode voltar a casar ou manter simplesmente uma ou várias concubinas. A legislação instaurada por Augusto parece sugerir que são inúmeros os homens em idade de procriar que não se casam após um divórcio ou a perda de uma esposa, preferindo instalar-se numa vida de concubinato.» (p. 63)

Num segundo capítulo, a autora aborda as relações sexuais fora do Casamento.

«Uma definição de adultério em Quintiliano mostra que se trata de uma relação sexual extramatrimonial que envolve uma mulher casada: "O adultério consiste em ter relações sexuais em casa com a mulher de outro." O uso normativo não define como adultério a situação de um homem casado que tem uma amante (paelex). Portanto, a obrigação de fidelidade conjugal existe apenas para as mulheres romanas.» (p. 65)

«Por outro lado, o adultério de uma esposa não parece macular a honra do marido, excepto no caso em que a ligação adúltera é agravada por um transgressão social. Por exemplo, Lívia Júlia, esposa de Druso, enganando-o com Sejano, prefeito das cortes pretorianas de Tibério, "desonra-se a ela, aos seus antepassados e aos seus descendentes por causa de uma relação adúltera com um homem oriundo de um município." Plínio, o Jovem, participa num julgamento presidido por Trajano, no decurso do qual é ouvida Galita, acusada de adultério. Esposa de um tribuno militar destinado à dignidade de senador, "ela tinha manchado a sua honra e a do seu marido amando um centurião", isto é, um homem pertencente à classe inferior dos cavaleiros. Estes dois amantes suportaram os rigores da lei Iulia: o centurião foi despromovido e banido; a esposa perdeu metade do seu dote, um terço dos outros bens, foi relegada para uma ilha e obrigada a vestir a toga das cortesãs em vez da stola das matronas. (pp. 65-6)

«No interior da classe governante, os erros públicos e privados são expostos. Assim, ninguém está dispensado de prestar contas da sua vida privada perante a opinião, nem mesmo os imperadores e a sua corte. Quando tem conhecimento do deboche da sua própria filha Júlia e, depois, da sua neta, Augusto descreve o seu comportamento transgressivo numa mensagem ao Senado e num édito ao povo; manda exilar a filha primeiro para a ilha de Pandateria, depois para Regium. Quando Cláudio soube dos excessos da sua esposa Messalina, fez um discurso de circunstância à sua guarda imperial descrevendo as infidelidades da esposa e prometendo que nunca mais voltaria a casar-se, visto que, decididamente, o casamento "não lhe assentava bem". Nero aproveita-se desta prática tradicional para causar a perda da sua mulher Octávia. Acusa-a num édito de ter tido relações com Aniceto, prefeito da frota, e de ter posteriormente abortado; em seguida, exila-a para a ilha de Pandateria, antes de a mandar assassinar.» (p. 67)

«Não há conhecimento da existência de nenhuma lei genérica sobre o adultério durante a República. Cícero espera que César reprima os comportamentos sexuais ilícitos durante a sua ditadura. Este condena, com efeito, à pena de morte um dos seus libertos por ter tido uma relação adúltera com a esposa de um cavaleiro, mas nada prova que ele tenha tomado medidas gerais para regular  moralidade sexual.» (p. 68)

«É Augusto quem faz votar uma legislação importante que visa essencialmente as classes altas. Ela é revolucionária porque, pela primeira vez, questões que pertenciam até então ao domínio privado, à autoridade do paterfamilias, ficaram, daí em diante, sob a alçada do Estado. O contexto sócio-histórico proporciona isso. Os historiadores moralistas que escrevem a partir do final da República deploram à saciedade a decadência dos costumes romanos e atribuem-na, em geral, à influência amolecedora e nefasta da Grécia e do Oriente, cuja conquista permitiu a descoberta de uma vida feita de elegância e de luxo, ao inverso da vida rude e austera dos romanos dos primeiros tempos da época republicana» ... Escreve Salústio: «"é lá [na Ásia] que pela primeira vez o exército do povo romano ganha o hábito de amar, de beber, de admirar as estátuas, os quadros de pintura, os vasos cinzelados" ... "Os homens desempenham o papel sexual pertencente à mulher e as mulheres oferecem-se a qualquer um."» (p. 69)

«É então que Augusto decide "corrigir os costumes" por decreto, como tentarão fazer em seguida Domiciano e os Severos. Com três leis - as leges Iuliae de adulteriis coercendis e de marintandis ordinibus em 18 AC e a lex Papia Poppaea em 9 AC - Augusto revoluciona o direito da família romana. [...] A lex Iulia proíbe os casamentos entre senadores, os seus filhos, netos e libertos, actores e filhos de actores.» (p. 70)

«Se [um homem] tira partido do adultério da sua esposa, torna-se ele mesmo culpado de proxenetismo (lenocinium). É a acusação que lança Apuleio no decurso da sua exposição de defesa, pessoal e apaixonada, contra um dos seus adversários, Herénio Rufino, que prostitui alternadamente a esposa e a filha e que vive, assim, dos encantos delas.» (p. 71)

«O esposo pode matar o amante com toda a impunidade, na condição de que este esteja tocado pela infâmia em função da sua profissão, ou se pertencer às categorias mais humildes, ou seja, se for proxeneta, prostituto, actor, bailarino, cantor de palco, ou se já tiver sido condenado na justiça, se for um liberto do marido, da esposa, do pai, da mãe, do filho, ou da filha, de cada um deles, ou ainda se for escravo. Esta lei augustiniana não autoriza a vingança privada contra cidadãos de estatuto social respeitável.» (p. 72)

«Se os cidadãos, casados ou não, podem usar sexualmente os seus escravos, uma mulher de condição livre é culpada de adulterium se o seu parceiro sexual é de condição servil.» (p. 74)

«Ao lado da união legal existe um outro tipo de relação que consideramos actualmente como quase marital, mas que, na mentalidade dos juristas romanos, não faz parte da esfera conjugal: o concubinato (concubinatus). Este abrange dois tipos de relação: uma relação extramarital de um homem que não tem intenção de casar com uma concubina, ou então uma relação monogâmica entre um cidadão e uma mulher que ele não pode desposar, entre um soldado e uma mulher, ou entre dois indivíduos libertos. [...] Certos escravos (homens ou mulheres) são comprados unicamente com o objectivo de estarem ao serviço do senhor e de serem "concubinos"» (p. 79)

«O soldados constituem um caso particular, pois são constrangidos a recorrer a este tipo de união [concubinagem] não sancionada pelo casamento. Parece que foi Augusto  que lhes vedou o casamento. Até à reforma, eles vivem em concubinagem, manifestamente tolerada pelas autoridades militares, ainda que a presença de mulheres, mesmo em tempo de paz, esteja em teoria proibida no exército.» (p. 82)

«Segundo Paul Veyne, a Itália romana, no século I AC e também depois, contaria com um ou dois milhões de escravos, para cinco ou seis milhões de homens de condição livre. A instituição do casamento é interdita aos escravos, desprovidos de personalidade jurídica até ao terceiro século da nossa era: "entre escravos e libertos, o casamento (matrimonium) não pode acontecer, mas a coabitação (contubernium) pode." (p. 83)

«Qualquer que seja o seu sexo, o escravo preenche uma segunda função para o seu proprietário - a de estar ao serviço do seu prazer. Na relação que os liga ao seu senhor, têm o papel de pueri delicati  (escravos masculinos favoritos), de concubinae (escravas femininas concubinas) ou de alumni (crianças bastardas nascidas de uma mãe escrava). O senhor dispõe dos seus escravos como de qualquer outro objecto sexual. A completa disponibilidade sexual dos seus corpos para uso do proprietário advém da situação institucional do seu estado, de sujeição absoluta, e do poder ilimitado do dominus. Propriedade do seu senhor, em teoria o escravo não tem qualquer direito sobre o seu corpo. Se o escravo é do sexo masculino, deve em princípio desempenhar o papel de passivo (impudicitia) na relação sexual com o seu senhor, em virtude do princípio segundo o qual "a impudicitia num escravo é uma obrigação."» (pp. 86-7)

«Uma particularidade da sociedade romana é a de reconhecer à prostituição um lugar no seu seio, até de a encorajar, embora marcando de infâmia os que vivem dela. A infamia é, a bem dizer, a ausência de reputação, de honra pública (fama), e todos os que são por ela atingidos - prostitutas, actores, gladiadores - perdem o seu estatuto de cidadãos do mesmo modo que perdem a protecção da lei concedida ao corpo do cidadão, podendo ser atacados, mutilados ou violados com toda a impunidade.» (p. 89)

«O Digesto define as prostitutas (meretrices) como as mulheres "sobre as quais não se comete delito sexual" (stuprum) e Ulpiano, como sendo "aquelas que fazem dinheiro com o seu corpo"» (p. 90)

«Em última análise, as prostitutas exercem um pouco por todo o lado. É Constantino quem manda construir um porneion em Constantinopla, proibindo que as prostitutas exerçam noutro sítio. Foi o primeiro "Eros Center", para utilizar a expressão de Bettina Stumpp!» (p. 94)

«A prostituição masculina não é tão conhecida quanto a feminina, porque é muito pouco referida nos textos literários. No entanto, os juristas consideram-na nos seus textos legais. Um do termos mais comuns, o substantivo scortu, de género neutro e de conotação pejorativa, tanto designa a prostituição masculina como a feminina. Uma lei inscrita numa tábua de bronze descoberta na cidade de Heracleia, no Sul de Itália, e identificada como sendo a lex Iulia municipalis de 45 AC estipula que os homens que vivem do corpo não podem participar nos conselhos municipais das pequenas cidades. A prostituição masculina também é legal e sujeita a um imposto do Estado. Uma inscrição encontrada em Preneste, no Lácio, oferece um calendário de festas, informando-nos de que o 25 de Abril, aquando do festival Robigalia, é dia de folga para os prostitutos romanos (pueri lenonii), "já que o dia anterior é dia de folga das prostitutas (meretrices)".» (p. 103)
 
«Certos prostitutos são pagos para penetrar os clientes. É provável que este tipo de comércio sexual tenha existido na Atenas clássica, mas nenhum texto o menciona, ao passo que as fontes romanas o referem abertamente. Névolo é pago para penetrar o patrão e a esposa deste: "É fácil e agradável enterrar o meu pénis nas tuas entranhas e encontrar o jantar da véspera? O escravo que cava um campo não será tão infeliz como aquele que cava o seu próprio senhor" (Juvenal)» (p. 103)

«Em Satiricon, de Petrónio, o herói narrador Encólpio [um jovem] é conduzido sem saber por uma velha matreira até um bordel, onde encontra, estupefacto, o seu amigo Ascilto [outro jovem], que também ali fora levado por um pai de família que pretendia obter os seus favores sexuais. [...] Tanto os actores como as actrizes excitam as paixões dos homens e das mulheres. [...] De acordo com Plutarco, o ditador Sila teve uma longa relação com o actor Metróbio. Tácito conta que Mecenas esteve muito apaixonado pelo actor Batilo, e Messalina pelo pantomimo Mnester. [...] Nas fontes literárias, a clientela destes prostitutos é sobretudo masculina. » (p. 104)

«A religião romana é particular no sentido em que não dá, como a maioria das religiões actuais, prescrições  relativas à sexualidade. Apenas os cultos estrangeiros, de origem oriental, prescrevem para os seus adeptos obrigações de abstinência sexual temporária.» (p. 104)

«O culto do falo está associado à religião do Liber Pater, o deus da germinação, religião que se espalhou em Itália por volta do final do século III AC. Aquando da festa dos Liberalia. que tem lugar a 17 de Março, uma procissão transporta numa carroça um falo, inicialmente nos caminhos rurais, depois até ao centro da cidade, para simbolizar o próprio deus. Nessa ocasião, os jovens envergam a toga viril para se tornarem cidadãos livres. A invocação do deus da fecundidade permite-lhes assegurar-se da sua capacidade de procriação, e as palavras obscenas lançadas durante a cerimónia têm um valor apotropaico.» (pp. 107-8)

 O capítulo terceiro trata do Amor Masculino.

«Apreciar a forma como os romanos pensaram as relações sexuais entre homens implica uma reflexão mais geral acerca da noção de género - a qual não passa pelo sexo biológico, mas sim pelo estatuto social - e sobre a noção de masculinidade, que apenas diz respeito à elite dos cidadãos livres. O corpo masculino é um objecto sexual como qualquer outro para os homens, quer seja o de um homem livre, o de um escravo ou o de um liberto. Esse tipo de relações sexuais é um acto "neutro" em si, mas tal neutralidade não exclui um julgamento quando esse acto interfere com outros valores socialmente reconhecidos, e deve ser compreendida no interior de certos limites. [...] A análise de Paul Veyne influenciou consideravelmente os estudos em matéria de sexualidade antiga. O autor caracteriza o romano livre por uma "bissexualidade activa", uma sexualidade viril, conquistadora e dominadora. Vê na oposição passivo/activo a estrutura essencial da relação sexual do homem romano com o seu ou a sua parceira. O rapaz escravo, tal como a mulher, só existe em relação ao olhar do desejo do homem cidadão, e este objecto sexual tem por função, também, ser perseguido ou penetrado. O cidadão romano deve ser quem penetra. O papel passivo seria o da indignidade. Assim, nas relações sexuais entre dois homens, o papel activo seria tolerado e aceite, enquanto o papel passivo seria condenado, uma vez que o homem livre perderia nele a sua masculinidade. [Esta análise foi recentemente posta em causa pela obra de Florence Dupont e Thierry Éloy, L'érotisme masculin dans la Rome Antique] » (p. 109)

«Uma relação sexual entre homens pode ser uma relação entre um cidadão livre e um escravo, um liberto ou um não-cidadão, geralmente mais jovem, com os quais a liberdade sexual é praticamente ilimitada. O estatuto de escravo implica uma ausência de autonomia, um controlo absoluto por parte do seu senhor, ou seja, uma submissão total e uma aceitação sem reservas de todas as suas exigências. O seu corpo não lhe pertence, mas ao seu proprietário. O escravo é, obrigatoriamente, um pathicus, aquele que desempenha o papel passivo na relação sexual. [...] A origem destas relações masculinas divide os investigadores em dois campos. Uns pensam que se trata de uma prática que os romanos foram buscar à Grécia, enquanto outros, como Paul Veyne, Eva Cantarella ou Craig A. Williams concluem que se trata de um fenómeno nativo. Os trabalhos de investigação de Saara Lilja, apoiando-se na lembrança de vários incidentes que ocorreram com cidadãos livres em data anterior ao teatro de Plauto, confirmam a origem não grega destas práticas sexuais, demonstrando ainda que, nas comédias de Plauto, as alusões a relações sexuais entre escravos e senhores são frequentes, estando ausentes da nova comédia grega. É a relação sexual que envolve um jovem rapaz livre (e não todas as relações sexuais entre homens) e que se insere na tradição helénica da pederastia que é vista pelos romanos como sendo uma prática grega (a expressão mos Graecorum é quase seu sinónimo). » (pp. 110-1)

«Porém, [se] a cultura grega é adoptada, no seu todo, pelos romanos, a pederastia, elemento essencial da educação dos jovens na Grécia, é, contudo, uma prática que choca a moral romana e que, por isso, nunca poderá tornar-se um modelo cultural. Os amores masculinos são, certamente, aceites pelos romanos, mas a pederastia, no sentido restrito do termo, ou seja, o amor de jovens rapazes livres, é objecto de uma violenta rejeição, redobrada pela recusa da nudez do corpo masculino. [...] Cícero denuncia, com ironia, os amores gregos entre um homem adulto e um jovem rapaz livre: "O que é, na verdade, esse amor da amizade? Porque é que ninguém ama um jovem feio ou um velho bonito? A mim parece-me que esta prática nasceu nos ginásios gregos, onde estes amores são livres e autorizados."» (p. 111)

«Os romanos tentam a todo o custo afastar a juventude de condição livre deste costume grego. Não é uma questão de sexo, mas de estatuto social. Aos seus olhos, estes amores têm a ver com stuprum e, constituindo uma ameaça à integridade física de um corpo masculino, desonram-no irremediavelmente. Este desejo sexual é, em contrapartida, tolerado se o seu objecto não for um jovem cidadão de condição livre. A pederastia está ligada ás relações entre homens livres e escravos, exclusivamente em função do prazer. A erotização do corpo dos rapazes é óbvia, o desejo que provoca é natural, mas o cidadão só pode tentar satisfazer-se com um escravo ou um liberto. Séneca, o Reitor, numa polémica, põe na boca de um cônsul que defendia um liberto acusado de ter cedido ao desejo sexual do seu senhor: "a impudicitia num homem livre é um crime; num escravo, um dever; num liberto, um serviço". Até Cícero, que exprime o receio dos romanos de verem o modelo pederástico grego insinuar-se na educação dos jovens romanos livres, compõe versos eróticos para o seu secretário, o liberto Tiro, e queixa-se, segundo Plínio, o Jovem, por Tiro lhe ter recusado, caída a noite, os beijos que lhe devia após o jantar. Não há aqui nenhuma contradição.» (p. 112)

«A adolescência masculina constitui um período muito vulnerável, e, por isso, é preciso protegê-la, pois esta exerce uma atracção muito forte sobre os outros homens. Juvenal avisa os pais que geraram um filho dotado de beleza corporal que se preparem para uma vida de miséria e angústia, porque "é raro o acordo entre a beleza e a pureza sexual". [...] Tal como escreve Thierry Éloi, "tal proibição, em Roma, da pederastia grega é deveras surpreendente numa cultura que não faz do erotismo masculino uma proibição sexual se este for praticado entre os escravos e os libertos". O autor procura compreender os fundamentos culturais desta proibição e analisar "a ruptura que separa Roma da paideia, ou seja, da educação aristocrática grega e da pederastia que provocava". Na sua opinião, "a recusa da pederastia grega em Roma não é uma repulsão sexual, mas sim um interdito político".» (p. 113)

«O modelo pederástico pedagógico grego é, portanto, impossível em Roma. No entanto, é um fantasma que alguns poetas perseguem ao longo das suas obras. O mais ilustre de entre eles, Virgílio, interessou-se particularmente pelas relações masculinas. No Canto IX da Eneida, Niso e Euríalo formam um casal troiano masculino perfeito. E a sua segunda écloga é frequentemente interpretada como sendo, em parte, autobiográfica: segundo uma tradição relatada por Marcial, por Apuleio e pelos biógrafos antigos de Virgílio, este ter-se-á apaixonado pelo jovem escravo Alexandre, que conheceu em casa do seu protector e amigo Polião, segundo Apuleio, ou em casa de Mecenas, segundo a versão de Marcial; este ter-lhe-á oferecido um presente e, em troca, Virgílio terá dedicado a sua segunda bucólica ao seu benfeitor. Esta constituirá a queixa amorosa do poeta, que cantaria sob a máscara de Córidon o seu desejo não entendido por Aléxis. Comprovaria ainda que o modelo pederástico existe em Roma. Ora, na explicação biográfica da génese do poema, não poderá existir amor pederástico, uma vez que Alexandre, sendo um escravo, não é mais do que um objecto sexual que circula de um homem para o outro, no âmbito de uma oferta e, em seguida, de uma contra-oferta.
Já o poema transforma Alexandre em Aléxis, um escravo romano numa criança grega livre, erómeno cortejado por um erasta. Duas realidades sociais inconciliáveis. Thierry Éloi demonstrou, com perspicácia, que este poema não dá conta da apropriação de um comportamento erótico grego pelos romanos, mas que deseja ser a imagem inatingível do país grego fantasiado por eles. "[...] Estas imagens gregas do amor não deixavam os romanos eroticamente indiferentes. O que Virgílio planeava na perseguição de Aléxis por parte de Córidon era a fantasia inacessível aos romanos da pederastia grega." Os casais masculinos de heróis na Eneida perseguem, também eles, o sonho de relações pederásticas com base num modelo educativo e espiritual. Também nas Metamorfoses, Ovídio exalta a forma mais nobre de pederastia, a paedeia, a propósito de Apolo que se enamorou do jovem Jacinto.» (pp. 113-4)

«A obra que se interroga verdadeiramente sobre os amores masculinos e que, na posteridade, se tornou a obra de referência para os homossexuais da nossa época é o Satiricon, de Petrónio. O elo unificador dos diferentes episódios que relatam a vagabundagem incessante do herói narrador Encólpio de lugar em lugar, de pessoa em pessoa, cuja disparidade é infelizmente acrescida pelo aspecto lacunar do texto, reside provavelmente no grande amor de Encólpio pelo seu jovem amigo Gitão. Gitão, ficção de um puer delicatus, objecto de todas as tentações, objecto por excelência do desejo de todas as outras personagens, masculinas e femininas. A estrutura narrativa é a de uma relação amorosa "triangular", conflituosa na sua essência: o casal que Encólpio e Gitão formam é posto em causa por uma terceira personagem (o amigo Ascilto, o poeta Eumolpo ou a mulher Trifena). Ascilto é o primeiro a roubar Gitão a Encólpio. Depois, Eumolpo, engana, por sua vez, o seu amigo levando Gitão, que entretanto se torna seu cúmplice. As ocasiões de perda e, depois, de reconquista de Gitão multiplicam-se.» (p. 115)

«As instituições republicanas instauraram também uma repressão que demonstra uma vontade estatal de proteger a moral pública e, principalmente, a honra dos cidadãos livres, apesar de provavelmente não existir nenhuma lei específica. A proibição sobre as crianças de nascimento livre é tão forte, que um édito é lançado, no século II AC, contra todos aqueles que perseguem matres familias e crianças menores. Os magistrados encarregados do caso decidem, por vezes, impor uma punição exemplar à pessoa que cometeu um acto contrário à pudicitia para com uma pessoa de condição livre e do mesmo sexo.» (p. 116)

«Os cônsules proibiram o culto de Baco [a iniciação nos mistérios báquicos supunha a violação dos jovens] e lançaram~se na sua repressão. [...] Vários cidadãos foram acusados de terem participado em orgias e de se terem envolvido entre si em relações sexuais. Sete mil "conjurados" foram presos, executados ou aprisionados. A repressão deste escândalo mostra quanto a sociedade romana receia os perigos do sexo e do prazer para os jovens, porque o stuprum que os corrompe e os submete os torna potenciais criminosos políticos, desviando-os dos seus deveres cívicos.» (pp. 117-8)

Nos vários incidentes que o livro relata, o que está sempre em causa não são as relações homossexuais mas o estatuto do cidadão livre, e o que é condenado é a sua actividade enquanto sujeito passivo (pathicus). Há uma lei que parece condenar as relações entre homens, provavelmente a lex Scantinia,  de que se ignora a data e cujo texto não chegou aos nossos dias. Deveria ter sido publicada entre 227 AC e 50 AC. Gabínio supõe que a lei não existia na época republicana , nem na de Augusto, e sugere que se trata provavelmente da lei pela qual Domiciano proíbe a castração. 

«Para um cidadão romano rico, o banquete é o local privilegiado do prazer [...] O ambiente do banquete e a sua sociabilidade permitem o eclodir de um erotismo masculino ideal, precioso, requintado e aristocrático, cuja figura central é o escravo favorito (puer delicatus, também designado deliciae), "a face luminosa do seu avesso sórdido, o cinaedus". Esta criança de longos cabelos representa a beleza e delícia do seu senhor. Plutarco define essa realidade tipicamente romana como "um pequeno rapaz de prazer", isto é, um brinquedo, não necessariamente sexual, ao dispor do seu amo. Pode ser simplesmente pela sua presença, uma forma de divertimento, como mostra o exemplo de Augusto, que procura "crianças cuja face e expressão sejam agradáveis, sobretudo mouros e sírios", para brincar aos dados, aos ossículos, ou às nozes."  (pp.120-1) 

[Acho que Augusto tinha bom gosto quanto às etnias, mas duvido que se ficasse só pelas brincadeiras...]

«Uma observação de Plutarco confirma que "para homens de idade, não é nem desonroso nem vergonhoso amar escravos machos na flor da idade, como provam as comédias." [...] A presença de jovens escravos machos é, a partir do século II AC, um elemento essencial do luxo e do requinte que o banquete deve oferecer aos nobre romanos. Tudo o que for luxo e volúpia em Roma é, simbolicamente, grego. Estes jovens escravos romanos são transformados em criados gregos, cujo modelo é Ganimedes, o efebo amado de Zeus que, uma vez levado pela águia, serve como criado no banquete dos deuses.» (p. 121)

«Estes escravos particulares mantêm frequentemente relações privilegiadas com o senhor da casa e ocupam a posição de concubinus, aquele que dorme com o amo. A presença destes favoritos mimados pelo pai de família, ao lado da esposa oficial, é considerado como normal e aceite pela sociedade. Num dos seus epigramas, Marcial lembra a uma mulher que esta deve aceitar a presença dos escravos junto do seu marido e não os considerar como rivais. Com efeito, eles são mais úteis a ela do que ao marido: "É graças a eles que és a única mulher do teu marido; dão-lhe o que tu, a tua esposa, recusas dar-lhe.» [...] De acordo com Plutarco, os imperadores, incluindo Augusto, mantêm delicati. Alguns chegam a ser elogiados pelos poetas da corte: é o caso do delicatus do imperador Domiciano, o eunuco Eárino, e o de Adriano, o célebre Antínoo.» (p. 123)

«Thierry Éloi mostrou a ambiguidade profunda destes jogos infantis pintados por Estácio e que levam a uma extraordinária transgressão simbólica, "como se a desordem das relações revelasse uma dimensão erótica, um fantasma, do amor dos pais romanos para com os seus filhos. Como se a condenação romana da pederastia grega fosse inseparável de uma patria potestas, indo até à apropriação da beleza dos filhos. Esta apenas pode ser realizada fisicamente através da adopção de escravos, permitindo que o filho seja também o amante". » (p. 123)

«[...] Com efeito, estes escravos, mesmo libertos pelo seu senhor e muitas vezes seus herdeiros, ficarão para sempre com as marcas do selo da infâmia. Correm sempre o risco de serem considerados cinaedi de corpo obsceno, cansados pela função sexual que assumem, depois do banquete, na cama do seu amo ou dos seus convidados. Séneca denuncia a sua triste condição e o tratamento sexual que sofrem: "Passo pelos tristes rebanhos de rapazes que esperam, no final do banquete, outros ultrajes no quarto. Passo por batalhões de rapazes, já adultos, classificados por raças e cores, de  modo a reuni-los consoante o mesmo tipo de pele, a mesma penugem no queixo, o mesmo aspecto do cabelo, para que os de cabelos lisos não sejam misturados com os de cabelo ondulado." O aparecimento da primeira barba significa o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Em geral, tal acontece por volta dos vinte anos, ou pouco depois: doravante o jovem não deve ser um objecto de desejo para os outros homens, não deve ter o papel passivo.» (p. 125)

«Os escravos prostitutos que já não se encontram na fase da adolescência imberbe formam um grupo próprio, para o qual existe um termo técnico, exoleti (literalmente "aqueles que cresceram"). Nero instaura, nos seus grupos de exoleti, a classificação por idade e por especialidade sexual (scientia libidinum). É uma realidade cultural que não tem equivalente na sociedade grega, onde o homem adulto deixou de ser um objecto sexual desejável. [...] Séneca denuncia a ambiguidade do escravo que "é homem no quarto de dormir, criança na sala de jantar"» (p. 126)

«Em várias fontes literárias, existem algumas alusões, embora raras, a casamentos entre homens. No entanto, não existem fontes jurídicas que as comprovem. A alusão mais antiga é de Cícero, a propósito de Marco António, que, durante a sua juventude, se prostituía e "foi registado num casamento seguro e estável" por Curião, como se este lhe tivesse dado uma stola, o vestuário característico da matrona romana. [...] Juvenal, na sua segunda sátira, lança uma diatribe contra os aristocratas efeminados, que chegam ao ponto de celebrar casamentos entre si. Suetónio, Tácito, Dião Cássio e Aurélio Victor contam que Nero celebrou publicamente pelo menos dois casamentos com homens.» (p. 127)

O capítulo quarto é dedicado ao Incesto, o Interdito Supremo.

«Na Antiguidade, a noção de incesto abrangia dois delitos sexuais distintos, que se traduzem pela mesma palavra, incestus: as relações sexuais ou o casamento entre parentes próximos (o incesto no sentido moderno do termo) e a violação, por parte de uma Vestal, sacerdotisa de Vesta, do voto de castidade ao qual está obrigada durante o seu sacerdócio.» (p. 129)

«Na realidade, as relações incestuosas constituem, aos olhos dos romanos, o crime mais importante entre todos os delitos sexuais, pois são uma ameaça à noção de fas, tão importante para eles, ou seja, uma ameaça à ordem do mundo estabelecida pelos deuses. Esta visão predomina durante todo o período pagão de Roma. O incesto é uma transgressão grave que ameaça a ordem social.» (p. 130)

«Tácito faz eco desta opinião ao lembrar que Séneca enviou o liberto Acteus junto de Nero para lhe revelar que a relação incestuosa que tinha com a mãe, Agripina, já se havia tornado pública, porque ela se gabava disso, arriscando a alienação da lealdade dos soldados, pois estes não aceitariam o poder de um príncipe "sacrílego" (profani), ou seja, que viole o fas. A imputação de relações incestuosas a alguns imperadores - Calígula, Nero, Domiciano - ilustra a desaprovação geral, por parte da opinião pública, por este género de transgressão sexual.» (p. 131)

«No final do poema 64, Catulo enumera os horríveis quatro actos que puseram fim à idade de ouro e que constituem uma violação da solidariedade familiar: o assassinato de um irmão, o desrespeito pelo luto para com os pais falecidos, o pai desejar a morte do próprio filho para se casar com a nora e a mãe unir-se ao filho, constituindo os dois últimos actos incesto. De Ovídio a Apuleio, passando por Séneca e muitos outros, o incesto é, na literatura, o acto sacrílego por excelência. Uma das narrativas secundárias do romance de Apuleio tem como intriga uma transposição para o universo ficcional do mito de Fedra: uma madrasta que se apaixona pelo filho do marido. Porém, assim que se apercebe de que ele procura esquivar-se ao seu desejo incestuoso, "[...] passa repentinamente de um amor sacrílego para um ódio ainda maior". O seu desejo é explicitamente considerado contrário às leis da natureza e à ordem divina, e é condenado sem apelo.» (pp. 131-2)


«Os júlio-claudianos, os flavianos e os antoninos fornecem mais exemplos de outras uniões endogâmicas permitidas pela lei e aceites pela moral comum. Augusto organiza ainda uniões endogâmicas por razões de Estado e de política da dinastia, procurando perpetuar a sua linhagem através da sua filha única, concentrando o sangue juliano nos seus eventuais sucessores. Assim, Júlia teve de casar com Marcelo, filho de sua irmã Octávia. Tibério, perante a inexistência de maridos júlio-claudianos convenientes, não permite que as suas enteadas viúvas, Agripina, a Antiga, e Lívia Júlia voltem a casar. Quanto ao ministro Palas, uma geração mais tarde, convence o imperador Cláudio a não deixar a sua sobrinha, Agripina, a Jovem, casar fora da família e levá-la a casar com ele, pois ela tem toda a vantagem de trazer consigo um neto de Germânico, o filho que teve do seu primeiro marido e que virá a ser o imperador Nero. Este casou com a sua irmã adoptiva Octávia, com a qual possui múltiplos graus de parentesco, cuja enumeração seria longa.» (pp. 134-5)

«Cláudio provocou um escândalo ao decidir casar, após vários casamento rompidos, com Agripina, a filha de seu irmão Germânico. Assim, suborna os senadores, "para que estes proponham, na primeira sessão do Senado, que ele seja obrigado a casar com a sobrinha, como se fosse do superior interesse do Estado, e que se conceda a todos os outros cidadãos autorização para essas uniões, até então consideradas incestuosas.» (p. 135)

«Em contacto com outros povos, os romanos descobrem práticas e normas diferentes das suas: é assim que vêem os persas autorizados a casar com as suas mães, os macedónios e os egípcios com as suas irmãs, os atenienses com meias-irmãs patrilaterais. Uma das reacções correntes é repudiar esses costumes estrangeiros e associá-los a um comportamento bárbaro. Porém, na prática, estes costumes estrangeiros eram tolerados, com a condição de serem aplicados fora de Roma. Um perfeito exemplo dessa reacção é a atitude de César quando teve de intervir em 48-47 AC na sucessão ao trono do Egipto. O testamento do rei Ptolomeu XII Auleta previa o casamento e o reino conjunto de Ptolomeu XIII com a sua irmã Cleópatra VII. E César executou as vontades do rei defunto. À morte do jovem rei, casa Cleópatra com o seu segundo irmão Ptolomeu XIV. E a bela rainha não será, para ele, um objecto de horror...» (p. 136)


* * * * *

Procedemos acima a citações dos quatro capítulos que constituem a Primeira Parte (O Modelo do Cidadão Viril) do livro em apreço.

Porque este post está já demasiado longo, apesar de apenas termos transcrito alguns trechos que se nos afiguraram mais significativos, encerraremos aqui a sua análise, deixando para outra oportunidade o restante conteúdo do livro cujos capítulos, todavia, passamos a indicar:

Segunda Parte (Corpo e Sexualidade)

Capítulo V - O Erotismo
Capítulo VI - A "Política dos Corpos"
Capítulo VII - As Doenças Sexuais

Terceira Parte (Observações Críticas Acerca da Vida Sexual)

Capítulo VIII - O Discurso Médico ou "Do Bom Uso da Sexualidade"
Capítulo IX - A Reflexão dos Filósofos
Capítulo X - A Crítica dos Moralistas
Capítulo XI - O Discurso dos Historiadores: A Figura do Imperador como Monstro Sexual

Do que foi dito e do que não se escreveu pode concluir-se que a sexualidade em Roma, apesar das proibições legais ou sociais e das repressões foi muito mais livre do que os textos deixam entender. As sucessivas investigações abonam nesse sentido. Foi a religião judaico-cristã que introduziu progressivamente em Roma toda  espécie de interditos que viriam a condicionar a moral sexual dos tempos posteriores à queda do Império Romano do Ocidente (476). Mesmo a vexata quaestio da posição activo/passivo, determinando que o cidadão livre seria sempre o activo na relação sexual e o escravo ou o liberto o passivo suscita as maiores interrogações. Formalmente era assim, mas na prática as entorses terão sido incontáveis, tendo a verdade ficado confinada aos espaços mais íntimos.

A "depravação" dos finais da República, que Augusto pretendeu "corrigir", aumentaria nos séculos seguintes, até à infiltração da "moral cristã" no território do Império. Um caso exemplar é a questão da homossexualidade, naturalmente aceite pelos povos da Antiguidade, que Paulo viria a fulminar nos seus escritos, apoiando-se na narrativa do Génesis. Um tabu que contaminaria toda a sociedade Ocidental e viria, inclusive, a ser adoptado pelo Islão, na parte em que o Corão consagrou os preceitos da lei mosaica.

Este livro, que recorre aos grandes historiadores modernos da matéria, além da consulta óbvia dos autores clássicos, merece uma leitura atenta, até porque é não só uma fonte de conhecimentos como proporciona alguma diversão - e até espanto - ao longo das suas páginas.


8 comentários:

Zephyrus disse...

Mais um excelente post. Serviço público. Obrigado.

Gostaria de frisar quando se fala de sexualidade dos romanos nos estamos apenas a restringir aos códigos morais e sociais de Roma e das elites e colonos dispersos pelo Império. Em boa verdade a diversidade de costumes era enorme e tudo indica que em vastas regiões do Império haveria mais liberdade. As descrições sobre as tribos celtas da Gália dizem-nos que as mulheres gozavam de mais liberdade que as mulheres romanas, e os homens preferiam frequentemente os seus amantes masculinos às mulheres. Pergunto-me, seria também assim nas tribos celtas e celtiberas que viviam em Portugal, na Galiza, Astúrias e Cantábria? E como seria no Levante peninsular, mais influenciado por Cartago e pelo Mediterrâneo Oriental? Temos depois o Norte de África. Até ao século XX em tribos do deserto persistiram tradições antigas de ligação homossexual entre homens mais velhos e mais jovens. Como seria antes do Islão? Mais a Oriente, nos vales do Tigre e do Eufrates, temos os relatos das tábuas de argila que indiciam uma grande liberdade sexual entre homens com menos de 30 anos. A penetração anal seria comum, sendo também comuns as declarações amorosas entre homens. Quem diria que os descendentes de persas e assírios 2000 mil anos depois viveriam debaixo de tanta repressão!

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Muito obrigado pelo seu comentário, Zephyrus.

Como eu mesmo referi no "post", é hoje pacífico considerar que as relações sexuais fossem, na prática, menos rígidas do que se encontrava "codificado" ou tenha sido transmitido pelos relatos coevos.

Não há dúvida de que muitos interditos nos costumes foram introduzidos pelo Cristianismo, apesar de se terem sempre registado evidentes transgressões. O Império Romano do Oriente foi mais rigoroso do que a sua metade ocidental, não obstante a herança grega. Mas este livro trata exclusivamente da Roma Antiga. Recomenda-se a leitura, já que as minhas transcrições se referem à Primeira Parte, não incluindo matéria das Partes Segunda e Terceira. Mas suponho que esta Primeira Parte é a mais apelativa para os interessados na matéria.



Anónimo disse...

Interessante,mas criticável, como é natural.

A obsessão da autora em restringir determinado tipo de relacionamentos a senhores e escravos, condu-la a erros desnecessários. O erro básico de incluir Antinous entre os escravos (pag 123). Do que se sabe sobre as origens de Antinous,nada consta sobre escravatura,nem acederia ao papel que desempenhou antes e depois de morrer se tal fosse o caso. Depois omite,para salvaguardar a sua tese casos como Herodes Atticus e os seus alunos,que obviamente não eram escravos, ou a cómica história do Satyricon entre um professor e um falsamente adormecido aluno,que tambem não é escravo. Mas como dizia o outro,quando os factos não confirmam a teoria,tanto pior poara os factos...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA O ANÓNIMO DAS 00.57:

Agradeço o comentário.

Não me parece, pela leitura do livro de que apenas publiquei excertos, que a autora tenha a obsessão de restringir o relacionamento masculino a senhores e escravos. A regra era que esses relacionamentos não deveriam existir entre cidadãos livres, ao contrário do uso na Antiga Grécia.

Haveria todavia muitas infracções à norma, como eu próprio sublinho no fim do "post". Tal como no caso do adultério, objecto de rigorosa legislação por parte de Augusto. Acontece até que o próprio Augusto, casado com Lívia, mantinha uma relação com Terência, mulher do seu amigo Mecenas.

Relativamente a Antinous, que a autora inclui na categoria dos "delicati", não se trata de um erro básico. Na famosa obra "Beloved and God - The story of Hadrian and Antinous", o livro de referência sobre as relações entre ambos, Royston Lambert escreve: «Was he then free or slave? The question is important as it involves not only Antinous's autonomy but also Hadrian's own consistency and daring. Even some of the most careful of modern schholars refer to him consistently as a slave and claim (not quite accurately) that the 'divinisation of a slave was the unique fact among the annals of antiquity'. The tradition of automatically calling him a slave goes back, as part of the general denigration of his and Hadrian's characters , to the Renaissance.» (p. 20)

Sendo Antinous originário da Bitínia, logo de cultura grega, Lambert prefere considerar que não seria escravo, mas é uma opinião entre muitas outras, o que o próprio reconhece. Creio não podermos afirmar rigorosamente se Antinous era ou não escravo. Para lá da eventual violação do interdito o que me parece mais importante salientar é a paixão de Adriano, que o levou a deificar o próprio Antinous, seu jovem amante. A própria morte de Antinous permanece ainda hoje envolta em mistério.

Quanto a Herodes Atticus, talvez não tenha sido referido pela autora - agora já não me recordo - pelo facto de ser de origem grega e de exercer o seu ministério em Atenas.

No caso do "Satyricon", não é afirmado que Encólpio e Ascilto fossem escravos, embora Trimalquião, o anfitrião do banquete, o tivesse sido em jovem.

Não tenho procuração para defender a autora do livro, mas não me parece que tenha incorrido em erros. Considero mesmo que se trata de uma das melhores obras - abrangentes - sobre a vida sexual na antiga Roma.


Anónimo disse...

Vejo que os temas clássicos continuam a estimular a dialéctica entre os frequentadores das redes digitais, não normalmente celebradas pela cultura ou pelo rigor. Antes assim. E então:
1) A espessura do livro do Lambert não o torna necessàriamente uma referência fiável. O suposto envio do muito jovem Antinous para o Paedagogium em Roma,longe das viagens do imperador,a cuja intimidade só seria admitido passados anos,o que não tem qualquer mesmo vaga sustentação documental ou epigráfica, é simplesmente uma tentativa fruste de "limpar" a imagem do relacionamento para a concordância com os cânones actuais. Até as tentativas de "envelhecimento" do jovem pela análise da estatuária foram postas em causa no estudo anexo à recente exposiçao em Oxford.
2) Herodes Atticus,greco-romano,amigo de imperadores,cônsul,professor de Marco -Aurélio e Lucius Varus nâo exerceu o seu munus em Roma?
3)Quanto ao Satyricon não falei dos protagonistas mas da historieta do professor e do aluno falsamente adormecido,o que nos dá uma visão dos hábitos pedagógicos romanos...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA O ANÓNIMO DAS 16:01:

1) Julguei que apreciasse o livro de Lambert. Aliás, ele é de opinião que Antinous não era escravo, como pode confirmar. O que ele afirma é que a maior parte dos investigadores modernas o considera como tal. Não tenho evidentemente o tempo necessário, e a paciência, para procurar agora quais são os investigadores que partilham de uma ou de outra opinião. Nem vejo qualquer tentativa de "limpeza" da imagem.

2) No seu primeiro comentário insurgiu-se porque a autora do livro não referiu Herodes Atticus. De facto, não me recordo que o tenha feito. Mas isso não é importante, já que ela não poderia referir toda a gente e certamente seleccionou alguns exemplos. É verdade que Atticus esteve em Roma e até foi cônsul. Mas, como aludiu aos seus alunos, eles notabilizaram-se durante o tempo em que Atticus exerceu em Atenas, razão que me levou a supor que a autora tenha privilegiado citar os naturais de Roma. Todavia, isto são suposições.

3) Quanto à história do professor e do aluno do "Satyricon", neste momento não me recordo e não tenho oportunidade de ir reler o livro. Referi os protagonistas e Trimalquião e isso é bastante.

Zephyrus disse...

Acrescento ao meu primeiro comentário a seguinte informação que me parece pertinente. Está ainda por fazer uma obra que compile todos os rituais sexuais em contexto religioso e mágico que se praticavam na Europa, Próximo e Médio Oriente antes do fim do Mundo Antigo. Haveria certamente escândalo e muitas surpresas. Boas Festas ao autor e leitores!

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Zephyrus:

Existem obras sobre os ritos sexuais em diversas sociedades da Antiguidade mas, de facto, não conheço alguma que reúna todos os povos do Mundo Antigo, que deveria incluir também o Extremo Oriente, a África Sub-Sahariana, as Américas e a Oceania. Apenas há estudos dispersos, incompletos, e sem possibilidade de comparações cronológicas. E muitas geografias nunca foram abordadas, que eu saiba.

Talvez alguém se abalance um dia a tão ciclópica tarefa.

Agradeço e retribuo os votos de Boas Festas.