quinta-feira, 28 de maio de 2020

A PESTE DE LONDRES




Em 1722, Daniel Defoe (1660-1731) publicou A Journal of the Plague Year, de que existe uma tradução portuguesa, da autoria de João Gaspar Simões, com o título Diário da Peste de Londres, editada em 1964.

Escritor, jornalista, panfletário, mas também comerciante empenhado nos seus negócios, Daniel Defoe (aliás Daniel Foe, segundo registo de baptismo) foi autor de numerosas obras e inúmeros panfletos, mas ficou famoso pelo seu livro Robinson Crusoe (1719), pioneiro do moderno romance europeu.

No Diário da Peste de Londres, o autor conta, como testemunha presencial, a situação vivida em Londres, em 1665, aquando da grande peste que assolou a cidade. É evidente que Defoe, que tinha cinco anos na alura dessa epidemia, não poderia relatar os factos tal como descritos. Todavia, a obra é assinada por um misterioso H.F., o que nos remete para a hipótese de se tratar de Henry Foe, tio do autor, correeiro em Wood Street. Assim, muito provavelmente, Daniel Defoe terá baseado a sua narrativa num diário escrito pelo tio, contemporâneo dos acontecimentos.

A publicação da obra em 1722 deveu-se talvez à nova ameaça do continente europeu em consequência da Grande Peste de Marselha (1721), importada do Médio Oriente e trazida por passageiros e tripulação de um navio que aportou naquela cidade do sul de França.

Foi em Setembro de 1664 que começou a ouvir-se falar em Londres de que a peste voltara a aparecer na Holanda, e os primeiros óbitos em Inglaterra verificaram-se em Dezembro de 1664. As várias paróquias londrinas foram sucessivamente contaminadas. Com o pânico que se apoderou das populações, muita gente, a que pôde, abandonou a cidade, deixando os seus haveres à guarda de terceiros. A Corte retirou-se para Oxford e parece que nenhum membro da família real foi contaminado. Os pregadores proferiam sermões em que denunciavam um castigo divino, as igrejas enchiam-se de fiéis, o que só facilitava a propagação do mal, e de toda a parte surgiam bruxos, charlatães e adivinhos, vendendo pílulas e poções, feitiços e amuletos, praticando exorcismos. «Eram frequentes as proclamações deste jaez: "Pílulas preventivas infalíveis contra a peste", "Preservativos absolutamente garantidos contra o mal", "Cordiais soberanos contra a corrupção no ar", "Poção incomparável contra a peste, pela primeira vez descoberta", "Remédio universal para a peste", "O único verdadeiro elixir da peste", "O antídoto real para todas as infecções conhecidas"» (pp. 53,54). E havia cartazes pela cidade com o domicílio de pessoas capazes de curar o mal. Abundavam os aldrabões que a todos ludibriavam com as suas promessas, propondo-se afastá-lo com sinais da cruz, signos do zodíaco, palavras ou figuras, especialmente a palavra ABRACADABRA, em triângulo ou em pirâmide. Os espectáculos públicos foram naturalmente proibidos e o Lord-Mayor publicou Ordenações relativas ao comportamento da população durante a epidemia e nomeou inspectores encarregados de verificar o cumprimento das determinações. Teriam de verificar quais as casas contaminadas, impedir que os doentes abandonassem os domicílios, cuidar dos doentes e dos pobres, providenciar ao enterramento dos mortos, etc. Procedeu-se à limpeza das ruas e interditados ajuntamentos, banquetes e lojas de bebidas. O autor procede a uma descrição minuciosa da vida quotidiana da cidade e do alastrar imparável da peste de bairro para bairro. O facto de se terem avariado os carros de combate aos fogos deixou que se propagassem numerosos incêndios.

Verificou-se uma grande negligência dos habitantes que, advertidos da chegada da calamidade, não tomaram as providências necessárias, inclusive no abastecimento de bens essenciais de alimentação, o que lhes permitiria terem permanecido nas suas casas evitando a contaminação. Como muita gente ignorava que já tinha contraído a peste, só o sabendo quando esta atacava os órgãos vitais, as pessoas morriam subitamente em qualquer sítio. Os cadáveres amontoavam-se nas ruas ou nos vãos de portas onde se sentavam. O aprovisionamento dos mercados tornou-se difícil e os vendedores que vinham do campo deviam transaccionar rapidamente os seus produtos e regressar a casa.

A peste provocava graves distúrbios mentais. Havia quem, em sinal de contrição, clamasse publicamente na rua os seus mais graves pecados, quem se suicidasse em casa e quem, já contaminado, se atirasse vivo para as valas que não paravam de se abrir. Na cidade exisitia apenas um hospital, mas a peste era mortal e não havia remédio que valesse.

Os vigilantes que tomavam conta dos doentes muitas vezes apressavam-lhes a morte para ficarem com os bens e os roubos eram praticados em larga escala, especialmente em casas onde toda a família já morrera, não existindo assim qualquer ocupante.

Segundo o autor, a peste chegou a dizimar 4.000 pessoas por semana. Os funerais religiosos deixaram de ter lugar e os cadáveres eram arrastados para o cemitério e lançados em valas comuns. Como normalmente acontece, os pobres foram os mais atingidos, e, no entanto, «Temos de reconhecer que se a peste grassou sobretudo entre os pobres, estes é que se mostraram mais ousados e destemidos, e foram eles que prosseguiram nas suas tarefas com uma coragem animal; que assim tenho de lhe chamar, já que não vejo fundamentos para isso na religião ou na prudência. Quase dispensavam precauções, lançando-se a tudo que lhes pudesse proporcionar trabalho, fossem quais fossem os riscos; tratavam dos doentes, vigiavam as casas fechadas, transportavam os contagiados ao hospital e, coisa bem pior, retiravam os cadáveres das casas para os levar para a cova.» (p. 133).

O Lord-mayor adoptou disposições para distribuir somas destinadas aos mais necessitados e também para proteger as classes que na ocorrência se viram mergulhadas na miséria: os mestres operários das manufacturas (vestuário, adornos, calçado, luvas, chapéus, marceneiros, estofadores, etc,); fragateiros, carregadores e profissões similares, já que poucos navios subiam o rio; os empregados da construção civil (pedreiros, carpinteiros, pintores, vidraceiros, ferreiros); os trabalhadores ligados à construção e abastecimento de navios; os que foram despedidos ou abandonados porque as famílias reduziram o seu trem de vida ou fugiram da cidade (lacaios, criados, caixeiros, marçanos, escriturários, criadas de servir). Também as pessoas de boa vontade contribuíram com as suas dádivas para minorar o sofrimento dos que perderam o seu pão quotidiano. Isto tornou possível atenuar a miséria na cidade e impedir que houvesse desordens, saques e assaltos.

Os boletins semanais de saúde raramente são rigorosos, e nas circunstâncias da peste de Londres terão sido muito mais falíveis, mas o autor apresenta, com as devidas reservas, os seguintes dados, relativos à mortalidade no período decorrente entre 8 de Agosto e 10 de Outubro do fatídico ano: 59.970 mortos, dos quais 49.705 devidos à peste, isto é, 83%. O número total de óbitos registados, em consequência da peste, é estimado em 68.590, mas o autor é de opinião que deverão ter morrido mais de 100.000 pessoas.

«Suponho que toda a gente ouviu falar de Salomon Eagle, esse entusiasta (nome dado aos que apenas se deixavam governar pelo Espírito Santo). Embora não contagiado, a não ser no cérebro, ia rua fora, às vezes completamente nu, com uma panela cheia de carvão em brasa em cima da cabeça, anunciando, em termos assustadores, a chegada do juízo final para a cidade. O que ele dizia ou o que ele queria, nunca eu o pude, realmente, entender.» (pp. 151-2)

Algumas medidas seriam hoje consideradas cruéis, mas no meio do horror descrito talvez tenham sido aceites sem graves objecções. «Porque é que nos foi dada ordem de matar todos os cães e gatos, senão porque, os animais domésticos, habituados a correr de casa em casa e de rua para rua, podem transportar no pêlo ou nas peliças os eflúvios pestilenciais dos corpos infectados? Por essa mesma razão é que no princípio da epidemia o lord-mayor e os magistrados, segundo o conselho dos médicos, publicaram uma postura segundo a qual todos os cães e gatos deveriam ser imediatamente condenados à morte, sendo nomeado um oficial de polícia para fiscalizar a boa execução da ordem.» (p. 176) Terão sido mortos 40.000 cães e 200.000 gatos! 

«Muitas vezes pensei no estado de imprecaução em que se encontrava a grande massa do povo na altura em que esta calamidade caiu sobre ela e no erro das medidas tomadas em tempo útil, causa de toda a confusão que se seguiu. Essa foi a causa do número prodigioso de pessoas que sucumbiram nesse desastre, quando é certo que isso tinha podido evitar-se, com a ajuda da Providência, se medidas convenientes houvessem sido tomadas; e a posteridade poderá, se assim entender, tirar daí a melhor lição. Mas voltarei a falar deste assunto.» (p. 177)

 «Enquanto desempenhei as minhas funções, não pude deixar de exprimir junto dos meus vizinhos a minha opinião sobre a reclusão das pessoas em casa; era mais que evidente que as medidas rigorosas assim aplicadas, além de serem em si mesmas muito penosas, tinham ainda contra si não corresponderem de maneira nenhuma ao fim proposto, visto os doentes passearem todos os dias pelas ruas; e era voz corrente ter sido muito mais sensato, a todos os títulos, um método em virtude do qual se afastassem os sãos dos enfermos, depois de visitadas as casas. Nesse caso apenas se teriam deixado junto das pessoas contagiadas aquelas que, na ocorrência, tivessem pedido para ficar, declarando-se prontas a suportar a reclusão com os doentes. O nosso plano no sentido de se afastarem os de perfeita saúde dos enfermos não seria aplicado senão nas casas infectadas, e confinar os doentes não era propriamente prendê-los; os que não pudessem mexer-se não se queixariam enquanto estivessem lúcidos e dispusessem de cabeça para raciocinar. Com efeito, quando chegavam ao delírio e à inconsequência, era certo protestarem contra a crueldade da reclusão; mas, pelo que toca ao afastamento dos de saúde, achávamos ser altamente justo e razoável, para seu próprio bem, separá-los dos doentes e, para segurança das outras pessoas, conservarem-se isolados algum tempo, até ter-se plena certeza de que estavam indemnes e não podiam infectar os demais; em nossa opinião, vinte ou trinta dias chegavam para isso. Ora não há dúvida de que, se se tivessem preparado casas expressamente onde os indivíduos de saúde cumprissem a sua semi-quarentena, estes teriam muito menos razão para se considerarem lesados com semelhantes medidas que com a reclusão dos doentes nas próprias casas.» (pp. 242-3)

«Foi, com certeza, graças à gestão admirável dos referidos magistrados que as ruas se mantiveram sempre isentas de espectáculos assustadores como de cadáveres ou de coisas indecentes ou desagradáveis, a menos que alguém caísse repentinamente morto na via pública, como já se disse; mesmo nesses casos cobriam geralmente o corpo com uma manta ou uma coberta, quando não o transportavam para o cemitério mais próximo, até à noite. Todas as tarefas indispensáveis que implicavam elementos de terror, as que eram ao mesmo tempo lúgubres e perigosas, faziam-se de noite; à noite é que se retiravam de casa os doentes, se enterravam os mortos ou se queimavam as roupas infectadas; e à noite, outrossim, eram transportados todos os cadáveres para as valas comuns dos diversos cemitérios, como tive ocasião de referir; deste modo tudo estava raso de terra e fechado antes de amanhecer. E o certo é que de dia não se viam sinais da calamidade, não se ouvia nada a esse respeito, a não ser o vazio das ruas ou os gritos e lamentações veementes que por vezes as pessoas soltavam das suas janelas ou ainda o grande número de casas e de lojas fechadas.» (p. 263-4)

«Aqui outrossim devo fazer uma observação, em proveito dos que vierem depois, a respeito da maneira como as pessoas se contagiavam umas às outras: não era apenas dos doentes que se recebia directamente o mal, mas também dos de perfeita saúde. Eu explico-me: por doentes entendo aqueles que eram reconhecidos como tal, que estavam e cama, que tinham recebido tratamento e que apresentavam inchaços ou tumores. Desses, por conseguinte, toda a gente se defendia; ou estavam na cama ou em tal estado que era impossível ocultá-lo. Por de perfeita saúde entendo aqueles que haviam sido contagiados, que tinham a doença em si e no próprios sangue, embora o seu aspecto exterior nada revelasse do seu estado; mais ainda, nem eles próprios se davam conta disso, como acontecia a muita gente durante vários dias. Esses exalavam a morte por todos os lados e a todas as pessoas que deles se aproximavam; até as suas roupas tinham a infecção, as suas mãos contaminavam os objectos que tocavam, sobretudo se quentes e húmidas, o que acontecia a cada passo.» (p. 270)

«Neste ponto é mister que eu observe também que a peste, como todas as doenças, ao que suponho, agia de maneira diferente consoante a constituição de cada um. Havia quem ficasse logo prostrado e a peste manifestava-se nesses através de febres intensas, vómitos, dores de cabeça insuportáveis, dores nas costas, sofrimentos que levavam o doente a um furor delirante. Tinham outros, inchaços e tumores no pescoço ou na virilha ou ainda nas axilas, os quais até ao momento de rebentarem, causavam angústias e tormentos insuportáveis. Noutros ainda, enfim, como já observei, a infecção mantinha-se secreta e a febre minava insensivelmente os espíritos sem que eles o sentissem antes de caírem desmaiados e de passarem sem sofrimento do desmaio à morte.» (pp. 283-4)

 «É preciso, com efeito, frisar, para maior glória da população londrina, que nunca, em momento algum da epidemia, as igrejas ou assembleias estiveram inteiramente fechadas e que ninguém se recusou a assistir ao culto público de Deus, a não ser em certas paróquias onde a doença grassava com particular violência; mesmo assim, a abstenção não se manteve tanto quanto a própria violência.» (p. 294)

«No que respeita ao comércio externo, não há muito a dizer. Todas as nações comerciais da Europa tinham medo de nós; nenhum porto da França, da Holanda, da Espanha ou da Itália queria receber os nossos navios ou trocar correspondência connosco.» (p. 300)

«As dificuldades ainda eram maiores em Espanha e Portugal, onde não consentiam, por preço algum, que os nossos navios, especialmente os de Londres, entrassem nos portos e muito menos ainda descarregassem as mercadorias. (...) Também ouvi dizer que a peste fora levada para esses países por alguns dos nossos navios, particularmente através do porto de Faro, no reino do Algarve, que pertence ao rei de Portugal, e que várias pessoas aí pereceram, mas não tenho confirmação do caso.» (pp. 302-3)

«Toda a espécie de ofícios manuais da cidade, quer se tratasse de artesãos quer de lojistas, se encontravam, como disse, sem emprego, o que provocou o despedimento e o desemprego de inúmeros jornaleiros e trabalhadores, uma vez que nesses ramos só se efectuava o trabalho estritamente necessário.» (p. 314)

«... o nosso comércio manufactureiro sofreu muitíssimo, e os pobres por toda a Inglaterra sofreram as consequências da calamidade que pesara unicamente sobre a cidade de Londres. No ano seguinte, é certo, proporcionou-se-lhes ampla compensação o facto de outra terrível calamidade ter caído sobre Londres; assim, graças a uma calamidade, a city empobreceu e enfraqueceu o país, e graças a outra, igualmente tão terrível no seu género, enriqueceu-o e compensou-o. Efectivamente, quantidade infinita de móveis, de roupas e outros artigos, sem contar arsenais inteiros de mercadorias e objectos manufacturados, produzidos em toda as regiões de Inglaterra, foram devorados no incêndio de Londres, no ano seguinte ao desta terrível provação. É de calcular a prosperidade que essa destruição trouxe ao comércio de todo o reino quando se tratou de remediar a penúria e de reparar as perdas. Numa palavra, todos os operários do país tiveram trabalho e quase não chegaram para abastecer o mercado e responder à procura.» (p. 315)

Não cabe aqui descrever as desgraças tão minuciosamente relatadas por Defoe, que discorre sobre os mais estranhos comportamentos humanos durante a epidemia. O livro pretende, e consegue, dar-nos um retrato bastante fiel da vida quotidiana na cidade, numa época de fracos recursos sanitários e de rudimentar organização da sociedade.

Também é interessante referir que, após a passagem da epidemia, as pessoas regressaram aos seus antigos costumes e a peste nada modificou nas atitudes daqueles que conseguiram sobreviver. E o grande incêndio de Londres, no ano seguinte, foi como uma espécie de purificação  da cidade. Nem mesmo os que clamavam, a maioria, tratar-se de um castigo de Deus, modificaram os seus costumes.

O livro termina assim:

«Não posso continuar. Dir-se-á que não passo de um censor e acabariam por taxar-me de injusto, se me entregasse à desagradável tarefa de censurar, fosse qual fosse a causa, a ingratidão e a regressão  entre nós da iniquidade sob todas as suas formas, tal como o pude verificar com os meus próprios olhos. Concluirei, pois, o relato deste ano de calamidade com a estrofe, muito imperfeita, é certo, mas sincera, que pus no fim das minhas notas ordinárias, no próprio ano em que foram escritas: -


Medonha peste houve em Londres
no ano sessenta e cinco,
Cem mil pessoas morreram 
Mas eu, contudo, escapei.

H.F.


Lendo atenta e integralmente o livro de Daniel Defoe, conclui-se que, hoje como ontem, são muito semelhantes as reacções às grandes epidemias que assolam o mundo.