domingo, 9 de maio de 2010

EM BUSCA DO URINOL PERDIDO



«- Chaque génération est marquée par un scandale de moeurs. La vôtre semble sous le signe fâcheux d'Oscar Wilde. La mienne est restée plus discrète, peut-être parce qu'elle avait eu deux leçons: l'affaire Verlaine, qui vous a frapée, et l'affaire Germiny, qui fut, dans les milieux mondains et politiques, ce que l'autre avait été dans les milieux littéraires.
«- Germiny? J'adore le potage Germiny, mais j'ignore l'affaire.
«- Elle n'est pas liée au souvenir de Lucullus ou de Tibère, mais de Vespasien.»

(Roger Peyrefitte, L'Exilé de Capri, 1959)


Em 6 de Dezembro de 1876, às 23:35 h, o conde Eugène de Germiny, de 35 anos, advogado na Cour d'Appel e Conselheiro Municipal de Paris, foi preso por quatro agentes (à paisana) da polícia de costumes num urinol público (uma vespasiana, como lhe chamam, ou chamavam, os franceses) quando praticava masturbação mútua com o jovem Pierre Chouard, de 18 anos, inicialmente dito aprendiz de joalheiro (uma profissão a condizer), mas na verdade sem profissão e que já fora anteriormente detido por vagabundagem. O urinol em questão situava-se nos Champs-Elysées, mais concretamente na Avenue Gabriel, nas traseiras do Café des Ambassadeurs.
Os agentes encontravam-se escondidos por detrás de uns arbustos, examinando as entradas e saídas do mictório e ao referenciarem o ingresso naquele templo (de Vespasiano, entenda-se), do conde e do jovem por mais de uma vez, decidiram precipitar-se sobre eles e conduzi-los ao comissariado de polícia do bairro.
Católico praticante, casado e pai de três filhos, advogado dos jesuítas e estrénuo defensor da moral pública, causídico diligente dos meios clericais e dos colégios religiosos, mais não restou ao desventurado conde, para justificar a sua presença àquela hora e naquele local, de que invocar a sua condição de conselheiro municipal. Ali se deslocara, segundo afirmou, com o propósito de verificar in loco as torpezas que se praticavam (era voz corrente e a voz do povo é a voz de Deus), naqueles antros de perdição, e, convenhamos, também de micção.
Libertado sob caução ao fim de algumas horas, foi o conde (e também o rapaz) julgado em 31 de Dezembro (curiosa data para um julgamento) desse ano. Considerados culpados do delito previsto pelo artigo 230 do código penal e Germiny também pelo delito previsto pelos artigos 200 e 212 do código penal, com as atenuantes, para ambos, previstas pelo artigo 463 do código de instrução criminal, foram condenados:
- Germiny, a dois meses de prisão, e 200 francos de multa;
- Chouard, a 15 dias de prisão, e 100 francos de multa.
E foram condenados solidariamente às despesas.
Este caso tornou-se então o maior escândalo do "tout Paris" e os jornais durante semanas, meses, não deixaram de se lhe referir, nos termos mais diversos, preferencialmente acintosos, como o autor do livro L'honneur perdu d'un politicien homosexuel en 1876, Christian Gury, advogado da Cour d'Appel, historiador e ensaísta, tão detalhada e exaustivamente documenta na sua obra. Não esqueçamos que é mister de toda a imprensa que se preze (e hoje também da rádio e da televisão) explorar ad infinitum todos os casos de costumes, nomeadamente se as pessoas visadas (porventura inocentes) fizerem aumentar o volume de vendas.
O urinol em causa tornou-se lugar de visita obrigatória e consta que o próprio chefe do Estado, o marechal Edme Patrice Maurice, conde de Mac-Mahon e duque de Magenta, monárquico convicto e segundo presidente da III República, fez questão de se deslocar ao local.
Regista o autor do livro que a detenção do conde de Germiny, por agentes da polícia de costumes, não terá sido alheia à discussão da própria existência dessa polícia pelo município de Paris, do qual Germiny era conselheiro. Além disso, Germiny distinguira-se pela defesa dos jesuítas e de colégios católicos numa acção contra o deputado republicano e anticlerical Maurice Rouvier, num processo que deu brado em França. Também a questão da amoralidade (ou imoralidade) dos urinóis públicos era tema de controvérsia na edilidade, havendo mesmo quem suscitasse a questão da iluminação pública dos mesmos, ideia que não teria passado pela cabeça do seu criador (dos urinóis), o conde de Rambuteau, antigo prefeito do Seine e continuador das grandes obras de transformação de Paris, levadas a cabo, no Segundo Império, pelo barão Haussmann.
Afastado Adolphe Thiers da presidência e sucedendo-lhe Mac-Mahon, com o apoio do duque de Broglie, receavam os republicanos, especialmente os que si situavam mais à esquerda (para usar a terminologia convencional) que o velho Marechal, legitimista, de cerca de 70 anos (ocorre-me inevitavelmente outro marechal, Pétain, que ascendeu aos 84 anos à chefia do Estado) procurasse com o apoio dos meios mais conservadores, nomeadamente da Igreja, restaurar a Monarquia. Por isso, a inevitável movimentação política e jornalística em torno do caso, com a finalidade óbvia de desacreditar um político promissor que se encontrava profundamente enfeudado ao Trono e ao Altar. Diga-se também, em abono da verdade, que sempre o catolicismo manteve uma posição de profunda hipocrisia em relação ao sexo, condenando veementemente em público aquilo que grande parte dos seus prosélitos e ministros do culto fazia em privado, como ainda hoje se comprova pelos casos, ditos de pedofilia, que desde há alguns anos, e hoje com particular acuidade, afligem a Igreja de Roma. E diga-se ainda que a denúncia de tais situações, oriunda dos Estados Unidos da América, país donde emanam muitos dos males que afectam o mundo, teve mais a ver com interesses políticos e económicos do que com uma defesa da moralidade, pois sempre se soube que grande número de sacerdotes, e até de bispos, mantinha relações íntimas com jovens (não necessariamente menores e naturalmente com o respectivo consentimento), como é normal em seminários, colégios e outras instituições exclusivamente frequentadas por pessoas do mesmo sexo. Só que agora surgiu a questão das indemnizações, em que os americanos são peritos. È por isso que nunca se soube se a inscrição nas notas de dólar "In God We Trust" não quereria afinal dizer "In Gold We Trust".
As vespasianas francesas começaram a ser demolidas nos anos sessenta do século passado, durante o consulado do general De Gaulle, ao que se diz a instâncias de sua mulher Yvonne, que as considerava focos de imoralidade pública. No seu livro Propos secrets II, Roger Peyrefitte conta uma aventura pessoal num desses urinóis dos Champs-Elysées, então célebre, vizinho do Teatro Marigny, onde fora vítima de chantagem só evitada por uma corrida até junto dos guardas do Eliseu. E recorda, a propósito: «à propos des pissotières en face de l'Elysée, - il y en avait trois jusqu'à la destruction récente de ces édicules bienfaisants...».
Ao longo de mais de um século, foram os urinóis públicos locais de encontros (e desencontros) sexuais, assiduamente frequentados por pessoas de todas as categorias sociais e contribuíram (quer se queira quer não) para evitar males maiores à sociedade. A extinção desses templos (porque não chamá-los assim) veio criar tensões profundas em todas as camadas da população, mas o assunto, por demasiado recente, não interessou ainda nem historiadores, nem sociólogos.
Também ao longo desta centúria foram diversas as atitudes policiais em relação aos frequentadores, sendo curioso que, nesta matéria, os regimes republicanos e democráticos se revelaram geralmente mais puritanos do que os regimes autoritários, já que para estes interessava principalmente a manutenção das aparências públicas e um urinol, em última análise, é um sítio privado.
Finalizemos, porque o texto já vai longo, com uma saborosa nota da Prefeitura de Polícia de Paris, referida por Christian Gury: em 18 de Março de 1878 a polícia surpreendeu, em flagrante delito dentro de uma viatura, no boulevard Voltaire, Henri-Mathieu Tasnier, operário-vidraceiro, de 18 anos, súbdito holandês, natural de Maastricht e o visconde Paul Stanislas d'Arjuzon, de 30 anos, filho do camareiro de Napoleão III. Segundo o relatório da polícia, o visconde chupava o membro de Tasnier de maneira "dégoûtante". E termina Gury: «Génial précurseur de l'Europe moderne, honorant en homme de goût du traité d'un baiser de paix un Hollandais de Maastricht, l'aristocrate n'était probablement pas si fou qu'il y parût...».
Aposto que nem Cavaco Silva, que enquanto primeiro-ministro de Portugal assinou o Tratado de Maastricht, nem José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, conhecem esta história.
* * *
Sugiro a Marina Tavares Dias, que há mais de 20 anos vem editando álbuns sobre Lisboa (desaparecida), alguns que se limitam a repetir fotos e postais já anteriormente publicados, uma investigação sobre os urinóis que existiram em Lisboa (a maior parte imitando, como não poderia deixar de ser, as vespasianas francesas e de que hoje creio não reste um exemplar para amostra), bem como outros mictórios mais modernos, existentes em espaços públicos, como jardins, estações de comboio, etc., que as sucessivas edilidades e outros gestores têm sucessivamente eliminado, presumo que a bem da Nação, mas com o evidente prejuízo de quem, pelo menos, mais não pretende do que urinar quando está aflito.

3 comentários:

Anónimo disse...

Eis como muito bem o ilustrado autor do blogue contribui para a elevação(digamos)do nivel cultural da blogosfera,a que há dias se referiu,lamentando-o. Faz muito bem em não limitar o seu conceito de cultura histórica aos aspectos políticos e económicos,mas seguindo em parte a Escola dos "Annales"(honny soit qui mal- y pense)dos mestres Febvre e Bloch,vem dedicar-se às vidas diurnas e nocturnas de estimáveis cidadãos por azar embrulhados nas malhas da verdadeira corrupção legislativa. É a História da vida corrente,tão importante como a outra. E é curioso que estes casos se passem em França,digna pátria do grande ministro Cambacérès,cuja grande lição legiferante,pelos vistos não frutificou suficientemente.
E quanto aos monumentos urbanos cujo desaparecimento lamenta,embora não fosse deles utilizador,concordo com a sua importância para o bem-estar geral dos citadinos,e apoio o seu apelo à dra. Marina

Anónimo disse...

Na sua destruição furiosa de tudo o que tem mais de 50 anos, a Câmara Municipal de Lisboa (todas as edilidades incluídas desde 1974) acabou com os urinóis públicos, nomeadamente as chamadas vespasianas, que deveriam ser consideradas peças de referência do mobiliário urbano. Parece que a razão (não) invocada se deveu ao facto de estes templos servirem para contactos homossexuais. Não se percebe então como é permitido que, não só na internet, mas em muitos jornais, sejam anunciados serviços do mesmo tipo, com fotografias elucidativas, dimensões, tipo de actividade e até preços.

Não acredito que a CML tenha interesses nestes negócios mas parece que são bastante lucrativos e, para mais, não pagam impostos ao Estado.

Sugiro, por isso, a legalização de casas de prostituição masculina, devendo os utilizadores exigir aos prestadores recibo comprovativo da actividade desempenhada, e que a mesma seja taxada em sede de IVA, em pelo menos 5%, como na generalidade dos medicamentos.

ZÉ DOS ANZ disse...

O caso Germiny é um dos muitos que ilustram, por um lado as peripécias das aventuras sexuais, por outro a hipocrisia com que altas figuras condenam a homossexualidade que depois praticam em todas as ocasião possíveis.

É o caso que actualmente se verifica na Igreja, que sempre condenou o chamado pecado nefando e sempre teve padres, bispos e até papas homossexuais praticantes.